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Guerras sempre foram aceleradores de mudanças que já estavam em andamento
É a mudança da órbita geoeconômica mundial do ocidente para a Ásia
Edição: 408
Data da Publicação: 29/07/2022
Estamos a quase seis meses de guerra na Ucrânia. Essa
guerra é um marco. O ocidente, sobretudo a Europa, são os grandes derrotados. As
pessoas tecem suas críticas a respeito do conflito e, pior do que isso, torcem
para a Rússia. Não se trata da Rússia ganhar ou não, não é isso, mas sim de que
o ocidente já é o derrotado.
O que estamos vendo é uma tendência que já vinha
acontecendo, a mudança da órbita geoeconômica mundial do ocidente para a Ásia. Apenas
no trecho que abrange os países desde o Vietnã, passando pela China, Taiwan,
Japão e Coreia do Sul, temos 40% da produção industrial global. Expandindo esse
trecho para Filipinas, Malásia, Indonésia, Singapura e Índia, chega-se a cerca
de 52% da indústria global. A Europa comporta 22% e os EUA e Canadá, apenas
18%. No longo prazo, entre os países europeus, somente a Alemanha ainda vai
estar entre os 10 maiores países produtores industriais do mundo.
Europa
Voltando à Europa, a Inglaterra já não estará mais entre os
10 maiores, e a Itália e França também sairão do clube dos 10 maiores
produtores do mundo. Atualmente, a Alemanha, que é a 4ª maior produtora industrial
do mundo, vai cair para 6ª ou 7ª colocação. Isso já estava acontecendo, a
pandemia e a guerra na Ucrânia só aceleraram esse processo. Aliás, guerras são
isso, aceleradores de mudanças que já estavam em andamento, por isso não é
apenas uma questão de qual será o resultado do conflito para a Ucrânia, cabe
entender que o mundo no curto, médio e longo prazo já está passando por essa
transição, menos ocidentalizado e praticamente nada europeu.
Irã
As pessoas estão prestando atenção em imagens de tanques destruídos
na guerra, seja da Rússia ou da Ucrânia, mas ignoram o grande quadro global. No
Oriente Médio, o Irã vai nascendo como liderança de fato, e as chances dele se
tornar uma liderança nuclear são enormes (se já não forem). Isso muda
completamente o quadro da região, o que é péssimo para o eixo Europa-EUA e para
a Rússia também.
Turquia
O novo suposto gasoduto que sairá do Azerbaijão e passará
pela Turquia em direção à Europa levará anos para ser construído como
alternativa ao gás russo, ele vai aumentar ainda mais o poder de barganha dos
turcos sobre os europeus (que já é enorme). Os europeus vão aprender muito
dolorosamente que, se era ruim depender da Rússia, será ainda pior depender da
Turquia.
Alemanha
Estamos vendo agora o começo do fim do sistema alemão,
sistema esse que sustentou a União Europeia. O gás que fluía pelo Nord Stream 1,
que ainda está indo da Rússia para Alemanha, foi desligado, aparentemente, para
manutenção (já foi religado). O que vimos foi o desespero do europeu caso os russos
não religassem o gás. A turbina que estava presa no Canadá pelas sanções foi
liberada após pressão da Europa, e, pela primeira vez, foi enviado para a Alemanha
por avião e não por navio, como sempre foi.
Hungria
Na reunião da União Europeia, em que se pediu que os
países racionassem voluntariamente em 15% a utilização do gás russo, a Hungria
foi taxativamente contra e comunicou que não fará esse racionamento, o qual
imporia à sua população um sacrifício sem propósito.
Japão
Nessa linha, o Japão também já avisou para os grupos
Mitsui e Mitsubishi que eles têm que manter suas participações em um projeto de
gás que tinham com a Rússia, mesmo que isso ameace a unidade nas sanções dos
países ricos a Moscou. E, sobre isso, a Comissão Europeia propôs ainda
desbloquear fundos de bancos russos congelados pelas sanções.
A Alemanha
e o Nord Stream 2
As sanções não atingiram os efeitos esperados nos russos,
mas surtiram um efeito gigantesco e muito bem avisado aos europeus. Os alemães trabalharam
com os russos nos últimos 20 anos na construção do gasoduto Nord Stream 2, para
ter alguma sustentação de poder energético próprio. O gasoduto é submarino e é
o único sistema de abastecimento europeu que realmente pode estar seguro,
porque os demais sistemas que passam pela Ucrânia e Bielorrússia, muito
provavelmente, nos próximos meses, também vão ser desligados ou atingidos de
alguma forma pela guerra.
O gás barato e em grande quantidade foram dois fatores que
fizeram a Alemanha se tornar a coluna vertebral da economia europeia em função
da mega quantidade de gás natural russo a preço relativamente baixo por muito
tempo. Se os russos desligarem o Nord Stream e nunca mais ligarem, eles quebrariam
a economia e a indústria alemã. Isso geraria falta de energia para a indústria
e falta no aquecimento do sistema e não há nada que os alemães poderiam fazer
no curto e médio prazo para manter seu modelo econômico que é baseado em grandes
volumes de gás a preço baixo, tanto para a eletricidade quanto para as
indústrias de entrada. Para quem não sabe, indústrias de entrada são as
indústrias que geram outras indústrias e são a base da economia. Você as atinge
e pronto, tem um efeito dominó derrubando as demais indústrias automaticamente,
como se fossem peças de dominó caindo uma a uma.
O modelo de fabricação em que a Alemanha se baseou e que
forneceu a base tributária que fez com que sua população fosse relativamente feliz
está perto do fim. Esse enfraquecimento do poder alemão está refletindo agora no
do poder europeu e vemos, nessa pesada desvalorização do euro, como o primeiro
sintoma entre muitos outros que virão. Uma Europa que não tem a Alemanha como motor
é uma Europa em que todos os europeus vão precisar buscar, por si próprios,
outras formas de funcionar.
Tudo leva a crer que esse é o objetivo norte-americano,
ou seja, reduzir o poder econômico da Alemanha, sequestrar a Europa e vender
seu gás que é pelo menos cinco vezes mais caro do que o gás russo.
A Europa, como conhecemos hoje, terá que mudar e não será
fácil. Mesmo que, se por milagre, a Rússia vier a ser derrotada pela Ucrânia, (o
que não deve acontecer), a grande estratégia russa já causou danos na Europa
sem dar um tiro, e, no longo prazo, foi o suficiente para limitar drasticamente
a capacidade de ação dos países europeus.
Agricultura
A energia e a comida estão subindo a preços assustadores
em todo o mundo. As limitações de fertilizantes estão afetando tudo em uma
escala global. Os chineses restringiram a exportação de fosfato, porque
precisam dele para sua produção interna, especialmente de arroz. Os russos
estão limitando a exportação de potássio e, como o preço do gás está muito alto,
muitas das empresas europeias pararam de produzir fertilizantes à base de
nitrogênio. É uma enorme pressão de preços em três frentes importantes:
chinesa, europeia e, é claro, russa.
Acrescente a isso, o fato de que o maior exportador de
trigo do mundo (a Rússia) está sob sanções porque invadiu a 4ª maior
exportadora do mundo, e isso está afetando o mundo todo. Mas a questão é que
mesmo que a guerra termine hoje, não iria adiantar, porque a base da
infraestrutura ucraniana, e, em especial, a logística foi praticamente
destruída, e o que restou das fazendas ucranianas não poderá ser facilmente colhido
como as pessoas pensam.
Além de vários explosivos não detonados e minas
espalhadas pelas fazendas, o que impede de os fazendeiros chegarem lá e colherem,
a base de transporte dos ucranianos foi tão severamente destruída que eles não
teriam nem mesmo como escoar essa colheita. Um dos maiores exportadores de
alimentos do mundo (Ucrânia), até o fim do ano, vai se tornar importadora de
alimentos para alimentar a sua própria população. É uma mudança drástica e
pesada.
A conta
não fecha
No meio de todos esses problemas, as lideranças europeias
falam em aumentar o orçamento de defesa, mesmo tendo que sustentar uma
população gigantesca de milhões e milhões de refugiados ucranianos que precisam
ser, diariamente, alimentados, cuidados e eventualmente medicados em uma das
maiores crises econômicas, energéticas e alimentares das últimas décadas. Isso porque
a Europa nem está perto do inverno, quando aí sim será a bomba e o grande
ataque geoeconômico russo. Há que se considerar ainda a questão do desemprego
entre os europeus e a perda do seu poder de compra com o euro desvalorizado. A
conta simplesmente não fecha. Não importa o quanto antipatizem com a Rússia e amem
a Europa, ignorar isso é simplesmente renunciar ao bom senso e à realidade.
Putin, por outro lado, apesar de todas as dificuldades pelas
quais verá a Rússia passar, e que, provavelmente, serão muitas, porque ela ficará
excessivamente dependente da China, por mais que busque parceria estratégica
com a Índia para tentar contrabalancear essa dependência chinesa, pode garantir
pelo menos duas coisas que as lideranças europeias não podem para sua população:
que os russos não vão morrer de fome e que não morrerão de frio.
Nem as todas poderosas e ricas nações da Europa
(Alemanha, França e Inglaterra) podem prometer isso. Quando dizem que a Europa
é rica e que a Rússia é pobre é verdade, mas os russos são os que têm energia,
alimentos e minérios; os europeus, apenas o euro.