Índos Puris

Os indígenas, os donos do sertão da Parahyba

 05/07/2024     Historiador Sebastião Deister      Edição 507
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Os puris formavam um grupo indígena brasileiro pertencente ao tronco linguístico Macro-jê, originalmente encontrado nos quatro estados do Sudeste do Brasil. Seu território tradicional correspondia a toda a extensão regada pela bacia hidrográfica do rio Paraíba do Sul e também às áreas limítrofes das bacias dos rios Grande e Doce.

O Rio Paraíba do Sul atravessa a conhecida região socioeconômica do Vale do Paraíba, sendo o rio mais importante do estado do Rio de Janeiro. Nasce na Serra da Bocaina, no município de Areias, no estado de São Paulo, com o nome de rio Paraitinga, recebendo o nome rio Paraíba do Sul na confluência com o Paraibuna, seguindo então entre a Serra do Mar e a Serra da Mantiqueira, esta última constituindo o grande o território ocupado pelos puris desde São Paulo até Minas Gerais.

Os primeiros registros acerca dos puris datam da segunda metade do século XVI. O termo originou-se da língua dos índios coroados, significando ousado, atrevido, pelo fato de tais indígenas atacarem de surpresa seus inimigos, movendo-se com muita rapidez pelos colinas e pelas sombras dos bosques. Na realidade, muitos autores consideram que os puris e os coroados constituíam um mesmo povo, ambos derivando, etnicamente, do povo koropó, até porque havia grande semelhança na linguagem, nos usos e costumes dessas tribos.

Por seu turno, coroado era a alcunha dada pelos portugueses aos índios que habitavam a região existente entre os rios Paraíba do Sul e Preto, em virtude de eles terem o hábito de cortar os cabelos no alto da cabeça, à semelhança da tonsura dos sacerdotes. Segundo o viajante Auguste de Saint-Hilaire, os coroados e puris teriam origem nas tribos goitacases que, repelidas pelos portugueses dos campos vizinhos à foz do Paraíba em Campos em 1630, embrenharam-se pelas florestas do sul das províncias do Rio de Janeiro e Minas Gerais, vindo, enfim, radicar-se nas áreas de Paraíba do Sul, parte de Vassouras e Marquês de Valença, tese, aliás, sustentada pelo historiador Joaquim Norberto de Souza e Silva. Ainda de acordo com Joaquim Norberto, os puris foram, por muito tempo, senhores de vários sertões derramados pelo território fluminense, mantendo, pela sua inata belicosidade, contínuas guerras contra os coroados. Eram pequenos de estatura, porém bem musculosos, de cor morena, valorosos e corajoso nas artes de lutar. Suas habitações nada mais eram do que pequenas ocas cobertas de folhas variadas e sustentadas por varas, no interior das quais acendiam fogueiras para se resguardarem do frio. Sustentavam-se da pesca, da caça e de frutos silvestres, principalmente aqueles colhidos em palmeiras e bananeiras.

A partir do fim do século XVIII e início do XIX, com avanço das fronteiras agrícolas em direção às áreas dos sertões do Vale do Paraíba, os contatos dos puris, assim como dos povos coroado e koropó com a sociedade colonial, tornaram-se frequentes e consequentemente conflituosos. O encontro com os grupos indígenas de territórios tradicionais nos sertões se intensificou a partir da expansão colonial do litoral em direção ao interior. Tendo a ocupação colonial se estabelecido primeiramente no litoral, o interior era uma fronteira ainda a ser transpassada, uma área considerada desconhecida onde ocorria a resistência dos considerados "índios bravos", sobre os quais era aplicado o discurso da necessidade da mão "civilizadora portuguesa."

Segundo registros do sargento-mor Manoel Vieyra Leão, a capitania do Rio de Janeiro, em 1767, abrigava uma extensa área ainda não explorada pela marcha colonizadora. A área ignota, indicada como "Certão ocupado por índios brabos" correspondia à confluência do Rio Paraíba do Sul com o Rio Piabanha, na região da atual cidade de Três Rios, em direção leste, ocupando vasta área ao norte das serras fluminenses. No século XVIII, muitas regiões, denominadas sertões, eram caracterizadas pelo distanciamento da civilização.

O povo puri, a partir principalmente da ocupação de suas terras tradicionais pelo latifúndio cafeeiro, sofreu grande diáspora*. De um lado estava colocado a guerra injusta imposta aos índios bravos, aqueles que não queriam ser recolhidos aos aldeamentos criados pela província, como, por exemplo, em Valença e em Conservatória atingindo, muito particularmente, as tribos coroados e araris. O processo de aldeamento modificava sensivelmente o modo de vida desses povos, impactando hábitos, organização social, tradições religiosas e linguagem, permitindo ainda que que a mão-de-obra indígena fosse requisitada para a realização de trabalhos que o governo entendesse necessários e que os nativos detestavam e, naturalmente, repeliam.

Documentos primários e relatos de viajantes do século XIX citam enorme fracassos das tentativas de aldeamento dos puris, em especial por motivo de sucessivas fugas para as matas e a recusa sistemática em aceitar serviços que escravizavam. Tal antagonismo ocorreu de modo intenso quando dos trabalhos de abertura do Caminho Novo por Garcia Rodrigues Paes a partir de 1699 na área de Paraíba.

Submetidos a maus tratos, os puris da região rebelavam-se, não aceitavam ordens e escapavam a todo momento. Por conseguinte, o convívio com os bandeirantes acabou por se tornar inviável, a ponto de os desbravadores praticamente desistirem da ideia de domá-los. Os puris haviam sido sempre errantes, andarilhos e caçadores, sendo assim totalmente contrários a uma vida sedentária e regulada pelos padrões dos aldeamentos e antagônicos, por natureza, ao controle do homem branco sobre seus hábitos e seu tempo de atividade. Os aldeamentos criados objetivavam a pretensa "civilização" dos indígenas, mas serviram tão-somente para escravizá-los e aculturá-los, e os puris acabaram por desaparecer do Sertão da Paraíba**, que na verdade era seu, de fato e de direito.

A propósito, o barão de Eschwege (Wilhelm Ludwig von Eschwege,  geólogo, geógrafo, arquiteto e metalurgista alemão), que fez dezenas de pesquisas no Brasil nos anos de 1810, deixou registrado com muito acerto que "(...) a tentativa de civilizar os índios significaria a sua destruição, e a sua pacificação poderia se transformar em guerra (...)"

*dispersão de um povo em consequência de preconceito ou perseguição política, religiosa ou étnica.

**Sertão da Paraíba foi a grande área de colonização do sul fluminense depois batizada como Paraíba do Sul

 

Imagem: Menino Puri (de Johann von Spix e Carl von Martius) em Reise in Brasilien