Estrada de rodagem para Arcádia - Parte 2

Trajetória Política e Social de Miguel Pereira

 29/07/2022     Historiador Sebastião Deister      Edição 408
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Como citado no texto anterior, o rudimentar caminho pelas montanhas da Serra do Couto ligando Arcádia a Portela já existia desde um bom tempo, tendo sido até melhorado por outros desbravadores em anos anteriores a 1930, mas suas condições de piso e segurança não eram satisfatórias para suportar o trânsito de caminhões e automóveis. Era preciso alargar algumas curvas complicadas e de ângulo inverossímil, compactar certos trechos alagadiços e providenciar a contenção de algumas encostas vacilantes. Como em determinados vales ente montanhas já havia uma ou outra fazenda, seus proprietários por certo colaboraram com homens, animais e dinheiro para a efetivação daquela empreitada inadiável, pois os negócios tenderiam a melhorar com a existência de uma boa estrada pela qual sua produção seria escoada com maior frequência e muito mais segurança.

 

Joaquim Pereira Soares

 

Joaquim Pereira Soares, já então um comerciante e empresário bem estabelecido em Miguel Pereira (a Loja Pereira Soares, por ele fundada em 1928, funciona até os dias atuais à Rua Machado Bitencourt), passou a liderar esse movimento com prazer e entusiasmo, incentivando os portelenses e miguelenses mais indolentes, encorajando os mais temerosos e convocando para a tarefa outros nomes famosos das duas vilas.

Como trunfo final, tinha ele a seu lado nada menos do que o engenheiro Bernardo Sayão Carvalho Araújo (1901-1959), o homem que, de fato, deu o traçado final para a nossa rodovia, e cuja grande obra seria a abertura de trechos da Belém-Brasília e na qual, tragicamente, ele morreria em 15 de janeiro de 1959.

Além do seu espírito empreendedor e do prazer que experimentava ao abraçar causas inéditas em benefício de sua comunidade, havia também em Joaquim Pereira Soares fortes interesses comerciais e pessoais naquela obra aparentemente impossível. De fato, começavam a surgir pela serra os primeiros automóveis particulares e os grandes caminhões de transporte que, galgando com esforço as colinas pela estrada sinuosa e desafiadora ou vindos das áreas vassourenses, por certo podiam trazer para a cidade novos visitantes e veranistas, além das últimas novidades comerciais e industriais lançadas no Rio de Janeiro, concorrendo assim para o fortalecimento do comércio miguelense.

A intensificação do fluxo rodoviário pela região seria apenas uma questão de tempo e oportunidade, e tal perspectiva saltou aos olhos espertos de Pereira Soares e de seus companheiros. Havia áreas na serra que o trem jamais poderia cruzar e pelas quais apenas um automóvel ligeiro e pequeno passaria com presteza em anos futuros. A própria indústria automobilística iria oferecer bons negócios na serra: venda de peças, pneus, combustíveis e lubrificantes e mesmo serviços de "carros de praça", a exemplo dos eficientes táxis que já circulavam nas grandes cidades. Tal conjunto de argumentos convenceu, por fim, grande parte da população serrana, entusiasmando até mesmo vários comerciantes e produtores rurais de Paty do Alferes que, espontaneamente, procuraram a comissão de obras montada por Pereira Soares e Sayão em Miguel Pereira.

Perderam-se no tempo e na memória de velhos habitantes os registros que apontam o tempo gasto nesses serviços e o custo de obra tão temerária, bem como os nomes dos homens que a concluíram, mas sabe-se que, manejando pás, picaretas, enxadas, ancinhos, foices, facões e enxadões e guiando carros de bois e carroças (com a ajuda eventual de uma e outra máquina enviada pela Prefeitura de Vassouras), aqueles personagens intimoratos valeram-se de seus músculos e gastaram seu suor para abrir uma estrada de dimensões razoáveis e relativa segurança que, já em 1935, possibilitava o trânsito de veículos automotores entre Arcádia e Portela, fazendo assim viva concorrência com os comboios ferroviários.

Analisando hoje as características geológicas da serra, podemos imaginar os sustos e os problemas que os viajantes da época enfrentavam ao subir penosamente as colinas, em especial quando sobre elas desabavam as tão peculiares chuvas de verão que, num átimo, alagavam a estrada: desbarrancamentos, lama e todo tipo de entulho por vezes obrigavam os passageiros a saltar de seus veículos e auxiliar no serviços de limpeza do caminho, mas nada disso impediu que, aos poucos, o trânsito rodoviário aumentasse pela serra. Todos sabiam que aquela estrada seria o principal elo com a Baixada Fluminense e, por extensão, com o Rio de Janeiro, trazendo progresso para toda a região. Portanto, nada mais natural que seus usuários e responsáveis dessem sua cota de sofrimento para complementá-la de uma vez por todas.

A despeito do esforço e dos custos empregados na obra da rodovia, a Estrada de Ferro continuou a imperar absoluta por muitos anos nas montanhas. De fato, ela não chegou a ser atingida com força pela concorrência da estrada de rodagem, até porque muitos viajantes, comerciantes e veranistas preferiam não se arriscar por aquele caminho sinuoso, instável e por vezes naufragado em uma lama intransponível e pegajosa, optando pela viagem mais segura proporcionada pela ferrovia. Deve-se ainda levar em consideração que, àquela época, não havia no país uma indústria automobilística de grandes proporções e, assim sendo, poucos privilegiados possuíam um automóvel de passeio. Além disso, o frete pelo trem era mais barato do que aquele pedido pelos proprietários dos pesados e fumacentos caminhões que circulavam pelas vilas serranas. Por conseguinte, a Estrada de Ferro Central do Brasil manteve-se dona da maior fatia de transportes pela região por mais algumas décadas até desaparecer, infelizmente, nos anos sessenta.

Todavia, todos sentiam que, mais cedo ou mais tarde, o advento do transporte rodoviário pela Serra do Couto seria um fato irreversível, mas foi preciso ocorrer a mais trágica e violenta das tragédias jamais vistas em nossas montanhas para que a rodovia recebesse atenção e cuidados por parte do Governo do Estado:  a grande enchente ocorrida em 29 de março de 1945.

 

IMAGEM: Joaquim Pereira Soares, um dos responsáveis pela abertura da estrada na Serra do Couto (atual trecho da RJ-125)

 

Na próxima edição: A Rodovia para Arcádia - Parte 3