A Fazenda da Luz - Paty
A trajetória da Fazenda do Tinguá, conhecida como Fazenda da Luz após os anos 1950
14/02/2025
Historiador Sebastião Deister
Edição 517
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A trajetória da Fazenda do Tinguá, conhecida como
Fazenda da Luz após os anos 1950, apresenta fortes ligações históricas, sociais
e econômicas com a cidade de Paty do Alferes e, principalmente, conexões
familiares com muitos de seus antigos moradores. Na verdade, as atividades da
propriedade envolveram ações comunitárias ao longo de períodos bem distintos
com base nos trabalhos de três grupos humanos pioneiros: a estirpe Kurt Gies,
dos primórdios do século XX até 1949; a linhagem de Domingues Corrêa, desde
1950 até 1963 e, por fim, a família Corrêa Ramos, no interregno 1963-1970.
É importante lembrar que no intervalo 1840/1949
aquele vasto latifúndio, acostado ao famoso Caminho Novo de Minas aberto pelo
sertanista Garcia Rodrigues Paes nos albores do século XVIII, apresentava a
titulação Fazenda do Tinguá. Com efeito, no ano de 1840 o fazendeiro Francisco
Ignácio Barbosa vendera a propriedade para Felippe José Dutra, cujo filho
Joaquim Antônio Dutra a repassaria, em 1855, para José Ignácio Corrêa Tavares
que, por seu turno, negociaria todas as terras com o coronel Manoel Francisco
Bernardes no ano de 1882. Não existe um documento de comprovação a respeito do
repasse das terras por parte do coronel Bernardes diretamente aos Gies, mas é
crível o fato de que, já no advento da centúria XX, a imensa propriedade se
encontrava em mãos da família Kurt Gies, época em que se iniciou a construção
da casa grande destinada a abrigar, como objetivo inicial, um hotel campestre.
Todo complexo fazendário ainda compreende uma área
de 127.600 m2, com a casa grande circundada por extensa vegetação natural
e por imensos eucaliptos centenários, provavelmente plantados no início do
século XX, a julgar pelo seu porte imenso.
O prédio principal, configurando a sede da fazenda, foi
erguido com tijolos bem maciços (o que, provavelmente, indica uma construção
mais contemporânea e não tão antiga quanto as grandes fazendas de café do Vale
do Paraíba) coberto por telhas francesas. Sua disposição interna apresentava
diversos dormitórios, duas grandes salas dispostas em dois pavimentos, sendo
que a superior ainda mostra a linearidade típica de um espaço familiar voltado
para as refeições da família e a inferior as características peculiares dos
espaços de recepção de visitantes.
Tais salões conectavam-se às alas de repouso por
longos corredores assoalhados, varanda circundante totalmente telhada e vários
sanitários. Os aposentos mais íntimos intercomunicavam-se graças a uma pequena
escadaria de madeira, agora desaparecida. Na parte posterior da casa-sede, observa-se
também o restante de um antigo conjunto de modestas construções residenciais
destinadas aos colonos da fazenda e, com certeza, aos demais empregados na
época conhecidos como de casa-a-dentro. No entanto, em nenhum ponto da vasta
propriedade surgem sinais ou quaisquer vestígios indicativos de que aquele
complexo residencial tenha se valido do sistema escravocrata para suas
atividades fazendárias.
Outra peculiaridade importante na construção da casa
grande, que apesar do tempo pode-se ainda perceber, é a presença de acabamentos
em terracota da empresa Cerâmica Sacoman S/A (muito conhecida e procurada entre
1895 e 1956), fundada pelos irmãos Antoine, Henri e Ernest Sacoman, oriundos da
cidade francesa de Marselha. Instalada em Osasco, São Paulo, a fábrica produzia
as peças conhecidas como telhas de Marselha. Os irmãos foram diretamente
responsáveis ela popularização do que até hoje é conhecido como telhas
francesas que, rapidamente, acabaram substituindo as antigas e pesadas
telhas coloniais moldadas em coxas de escravizados. Assim, a cerâmica de tom
avermelhado se tornou uma característica das construções do início do século passado.
Por conseguinte, o que se verifica na Fazenda da Luz é exatamente isto: todo o
telhado e o piso da varanda que circunda a casa grande vieram da empresa
Sacoman, indício inequívoco de que a propriedade foi erguida nas décadas
inicias do século XX e não no período de café do Vale do Paraíba.
Colégio
Cruzeiro RJ
Sabe-se que a propriedade, no decurso dos anos
entrantes de 1900, serviu de base para uma Colônia de Férias (Landschulheim) do
Colégio Cruzeiro, do Rio de Janeiro, educandário alemão fundado em 1862 que, a
propósito, continua em atividade na cidade carioca.
Em 1950 a Fazenda do Tinguá foi comprada pelo
português Custódio Domingues Corrêa, casado com a brasileira Aurora Graça Corrêa,
ele de origem portuguesa e ela, de terras paulistanas. Domingues era hoteleiro,
além de empresário de sucesso no ramo de construção civil. Trabalhador
incansável e idealista por excelência, administrava seus negócios a partir de
Nova Iguaçu, onde a sede de seus empreendimentos localizava-se no Bairro da
Luz. Ele próprio gostava de dizer que tal palavra tinha o dom de "abrir caminhos, enxergar além e ser
visionário". Por esse razão, não fez por menos em Paty do Alferes: ao
adquirir a grande propriedade, fez questão de nela apor o título de Fazenda
da Luz.
Todas as intervenções estruturais e construções
complementares da fazenda foram obra de Custódio Domingues Corrêa,
destacando-se aí a grande vivenda chamada pela família de hotel mas que, na
realidade, servia como abrigo e lazer apenas para familiares, amigos e
convidados. Eram 18 quartos decorados com cenas místicas que procuravam
valorizar a vida no campo. Na época, não se pensava no dito "hotel" como
hospedagem para pessoas fora do círculo familiar dos Corrêa, mas de qualquer
forma sempre havia muito circularidade humana pelo local, uma vez que a
família, além de numerosa, costumava trazer muitos amigos do Rio de Janeiro
para passar dias em Paty do Alferes. Mais tarde, após a morte do Custódio
(1963), sua filha Maria de Lourdes Corrêa Ramos (1928-2018) assumiu a fazenda
transformando-a em um hotel batizado, naturalmente, como Hotel Fazenda da Luz. Dinâmica
e empreendedora, D. Lourdes buscou valorizar especialmente o estilo
descontraído e leve da vida no campo, tanto que, em um jornal do Rio de
Janeiro, ela sugeria "(...) transforme o
Hotel Fazenda da Luz, em Paty do Alferes, em sua casa de campo... Clima europeu
e cidade e hospedagem 100% familiar. Informações pelo telefone 37-0167(...)"
De fato, o hotel experimentou um período de intensa
movimentação, com uma frequência expressiva de visitantes, e sua participação
nas atividades sociais de Paty criou em muitos moradores uma profunda memória
afetiva por aquele recanto verdejante e alegre, tanto que ainda hoje alguns
moradores mais antigos relembram a fazenda com nostalgia e muita saudade.
Com o tempo, entretanto, várias injunções familiares
e econômicas fizeram com que a Fazenda da Luz enfrentasse circunstâncias administrativas
e econômicas inesperadas, além da concorrência imposta por outros
estabelecimentos similares de acesso mais fácil e rápido. Eventuais desacordos
familiares também levaram os descendentes de D. Lourdes a abdicar da
propriedades, e assim a histórica fazenda mergulhou no ostracismo.
Felizmente, a Prefeitura de Paty resolveu, em 2021,
adquirir todo o complexo fazendário, objetivando ali implantar um parque
natural e, possivelmente, um museu a céu aberto que integre sua ambiência a atividades
ecológicas, patrimoniais e sociais. Segundo o pesquisador Coco Barsante, o
território da Fazenda da Luz é propício a estabelecer fortes laços entre a
memória urbana do município, o turismo rural, o ambiente natural, a bela história
local e a lembrança dos personagens que vivenciaram uma das épocas mais férteis
de Paty do Alferes.
No dia 29 de dezembro de 2024, o Parque Fazenda da
Luz foi oficialmente inaugurado e entregue à comunidade de Paty do Alferes,
preservando-se, assim, um dos seus mais belos e antigos ícones históricos.