A Fazenda da Piedade e Inácio de Souza Werneck - capítulo 5
A Trajetória Histórica do Município de Miguel Pereira
03/09/2021
Historiador Sebastião Deister
Edição 361
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O embrião demográfico de Miguel Pereira assentou-se
na Fazenda Nossa Senhora da Piedade de Vera Cruz, fundada por Manoel de Azevedo
Matos e sua esposa Antônia da Ribeira do Pilar Werneck em 1770, junto à margem
direita do rio Santana, tendo a auxiliá-los os filhos Ana de Jesus, Inácio de
Souza Werneck e Manuel de Azevedo Ramos. Passado algum tempo, a família construiu
uma segunda moradia bem mais espaçosa à margem esquerda do rio, anos depois ampliada
para constituir uma espaçosa e elegante propriedade, cujas atividades
agropecuárias trouxeram aos Werneck fortuna, fama e respeito por toda a área do
Tinguá. Com a morte de Azevedo Matos em 1788, a filha Ana de Jesus recebeu como
herança as terras de Monsores, junto aos limites da Freguesia de Sacra Família.
Por seu turno, o caçula Manuel de Azevedo Ramos foi agraciado com a grande Sesmaria
do Sacco, no cume da Serra do Couto, por cuja área cresceriam as localidades de
Barreiros, Javary e Portela. Dos três herdeiros, Inácio de Souza Werneck foi
aquele que maior quinhão recebeu do pai, vindo a ser o mais conhecido e rico
latifundiário entre todos os patriarcas que administraram as fecundas terras de
Vera Cruz.
Inácio nasceu em 25 de julho de 1742, na Freguesia
da Piedade da Vila de Barbacena, Bispado de Mariana (MG), demonstrando ainda
muito jovem vocação para a vida religiosa que, no entanto, deixou de lado para,
em 26 de setembro de 1769, esposar no Rio de Janeiro Francisca das Chagas
Monteiro. O casal veio, então, fixar-se na Freguesia de Nossa Senhora da
Conceição de Serra Acima do Paty do Alferes. Assim, no ano seguinte ao
casamento de Inácio, os irmãos Ana de Jesus, Manuel de Azevedo Ramos e Inácio
de Souza Werneck, este ao lado da esposa Francisca, concluíram as obras da grande
casa da Piedade, que seria bastante aumentada nos anos seguintes por conta do
expressivo aumento da família.
A partir de 1788, Inácio de Souza Werneck,
praticamente sozinho, assumiu a administração das vastas terras da Piedade,
cujas paredes assistiram ao nascimento seus doze filhos, batizados como Maria
do Carmo Werneck; Inácia Delphina Werneck; Luiza Maria Angélica Werneck; Manuel
de Azevedo Matos; Ana Matilde Werneck; Francisco das Chagas Werneck; Cândida
Werneck; Francisca Lauriana Werneck; Maria Isabel da Visitação Werneck; Inácio
das Chagas Werneck; Joaquina Teodora de Jesus Werneck e José de Souza Werneck.
Além de abastado fazendeiro e pai de numerosa prole,
Inácio ostentou, sucessivamente, as patentes de Alferes, Tenente e Capitão de
um Corpo de Milícias da Corte, terminando sua vida militar com a reforma no
alto posto de Sargento-Mor de Ordenanças em 20 de outubro de 1809.
Tantos títulos tinham sua razão de ser. Militar
devotado e fiel, Inácio prestou serviços de extrema importância para a Corte e
para o Governo da Província do Rio de Janeiro. Além de colaborar com o
aldeamento dos índios Coroados na região de Valença (agrupamento que embrionou o
atual distrito de Conservatória), em 1789 ele deixou na região as sementes de
uma vila que daria origem à igreja e à cidade de Nossa Senhora da Glória de
Valença.
Após décadas de intensas atividades junto aos
governantes da época, cansado e idoso, Inácio solicitou a reforma no posto de
Sargento-Mor. Tal reivindicação, porém, só lhe foi deferida pela Corte no dia
20 de outubro de 1809, quando ele já contava 67 anos. Uma vez atendido, Inácio
retornou para sua querida Piedade de Vera Cruz, onde o esperavam a esposa
Francisca, filhos e netos. Todavia, em 11 de outubro de 1811 morria na Piedade
sua companheira Francisca depois de 42 anos de vida conjugal. Viúvo, decidiu
abraçar a vida eclesiástica que abandonara em troca do casamento. Apoiado em
sua decisão por toda a família, escreveu então uma longa carta ao Reino na qual
expunha seus motivos e rogava licença para receber as Ordens. Dois anos depois,
recebeu do próprio Príncipe Regente D. Pedro I o Despacho Real contendo não
apenas a demissão de todos os seus cargos militares como ainda a autorização
para que se ordenasse padre.
Em dezembro de 1813, já com 71 anos, Inácio
finalmente viu-se contemplado pela Câmara Eclesiástica do Rio de Janeiro com as
Ordens sonhadas desde a juventude, numa rápida sucessão que logo o elevou à
classe de padre, com 1ª Tonsura e Ordens Menores no dia 18, Sub-Diaconato no
dia 19, Diaconato no dia 23 e Presbítero no dia 30, tornando-se assim o Padre
Werneck de Vera Cruz, alcunha com que passou a ser conhecido por toda a área
serrana.
Inácio faleceu no dia 2 de julho de 1822, aos 80
anos de idade. Atendendo ao seu último pedido, o corpo foi sepultado em Paty do
Alferes. Torna-se fundamental assinalar, no entanto, que a inumação de Inácio
ocorreu na antiga capela de Arcozelo e não atual Matriz de Nossa Senhora da
Conceição, já que esta se encontrava apenas esboçada em 1822.
A Fazenda da Piedade, no auge de sua produção,
chegou a concentrar em suas terras mais de 240.000 pés de café e cerca de 250
escravos, além de um notável plantel de animais de corte e de carga. Deu à
família Werneck condições de consolidar uma das maiores fortunas da Serra,
especialmente quando administrada por Francisco Peixoto de Lacerda Werneck, o barão
de Paty, (neto de Inácio) que dela se tornou proprietário após o falecimento de
seus pais. Com a morte do barão em 1861, a fazenda passou às mãos da baronesa
Maria Isabel Assunção Ribeiro de Avelar, da tradicional família Ribeiro de
Avelar, da Fazenda Pau Grande, que a administrou com dificuldade por alguns
anos. Com a derrocada da cultura cafeeira determinada pela Abolição da
Escravatura, a Piedade foi comprada pelo visconde de Arcozelo, genro do barão
de Paty, passando depois sucessivamente pelas mãos de vários proprietários e
entrando num irreversível processo de decadência, apesar dos esforços de alguns
de seus donos em mantê-la produtiva. Hoje, inteiramente restaurada pelo seu
último proprietário, o embaixador José Aparecido de Oliveira, a casa grande da
admirável Fazenda da Piedade mantém-se em Vera Cruz como um símbolo vivo da
grandiosa história que permeou nossas montanhas e cujos trabalhos, ao longo de
mais um século rico em homens e serviços, permitiram a ocupação do Vale do Rio
Santana e fizeram vir à luz muitas das raízes do atual município de Miguel
Pereira. A fazenda agora está rebatizada como Santa Cecília, sendo administrada
por Maria Cecília Aparecido de Oliveira, filha do embaixador.
Na próxima edição: As Primeiras Fazendas na Área de
Barreiros