Flor de Carne
Estranhamente, na cabeceira de seu túmulo humilde e quase longe da vista das pessoas brotou uma planta.
09/10/2020
Historiador Sebastião Deister
Edição 313
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O cemitério de Nossa Senhora da Conceição, em
Vassouras, abriga, no lado esquerdo de sua capela mortuária e junto à escadaria
que une sua parte antiga aos espaços mais novos, o restos mortais do Monsenhor
Antônio Rodrigues de Paiva e Rios. Modesto e simples em vida, o vigário deixou
por escrito seu desejo de ser sepultado em cova rasa, sem caixão e envolto
tão-somente em mortalha de penitente à semelhança daquela que cobriu Jesus
Cristo.
Monsenhor Rios nasceu em 1806 em Congonhas do
Campo, Minas Gerais, a mesma cidade onde Antônio Francisco Lisboa, o
Aleijadinho, deixou muitas de suas extraordinárias obras em pedra sabão. Após
concluir os estudos básicos na cidade natal, seguiu para o Seminário de
Mariana, ali recebendo as Ordens Sacras em 1831. Durante 22 anos exerceu o
vicariato na cidade de Bananal (SP). Em seguida, foi transferido para Desengano
(hoje Barão de Juparanã) paroquiando então a Igreja de Nossa Senhora do
Patrocínio. Dai seguiu para Vassouras como Vigário Encomendado da Paróquia de
Nossa Senhora da Conceição, onde trabalhou ativamente durante cinco anos.
Faleceu aos 68 anos, às 4 horas de madrugada no dia 9 de janeiro de 1875, com o
corpo sendo levado para o cemitério local.
Estranhamente, na cabeceira de seu túmulo
humilde e quase longe da vista das pessoas brotou uma planta. Ninguém soube
explicar, à época, se foram mãos religiosas e compassivas que a plantaram na
terra nua ou se ela germinou de sementes trazidas pelo vento ou - quem sabe? -
deixadas cair por um pássaro fugidio. Entretanto, sempre no dia de finados e
desde o enterro de Monsenhor Rios em 1875, desabrocha no local uma flor de
contornos diferentes e arredondados, de cor de sangue, que jamais havia sido
vista em qualquer local de Vassouras. De pronto, a população, entre incrédula e
perplexa, batizou-a de Flor de Carne por achar que ela nascera do corpo do
vigário ali inumado. Curiosamente, a flor aparece bem antes dos outros
elementos próprios da planta, como talos e folhas, e começa a despontar na
terra ressecada em meados de outubro para se exibir em toda sua beleza e
complexidade no dia 2 de novembro. Depois, vai lentamente perdendo seu viço,
para então murchar aos poucos e desaparecer por completo. Só então, em seu
lugar, surge a planta cuja altura nunca ultrapassa um metro de altura. Ao fim
de dois meses, ela abre sua copa em forma de leque como um complemento de seu
próprio mistério.
Esta sequência de transformações inexplicáveis
sempre passa a impressão de que a Flor de Carne morre de maneira
inexorável. Porém, no ano seguinte, toda aquela incrível metamorfose ressurge
com sua regularidade enigmática e multitudinária. Por outro lado, se mãos
curiosas ou desavisadas a tocam, a flor reage de imediato exalando um mau
cheiro insuportável.
Sabe-se que um antigo zelador do cemitério,
chamado Jovino Fontes, ignorou a história da flor e desprezou todas as
narrativas populares que a cercavam quando assumiu o posto no cemitério. Encontrando
um trecho de terra sem qualquer utilidade à cabeceira do jazigo de Monsenhor
Rios, resolveu cimentá-lo para melhorar o aspecto triste do local. Todavia,
após alguns meses o zelador foi presa de uma enorme surpresa ao ver que a flor
rompera a camada de cimento e desabrochara em todo seu esplendor, voltando
assim a aparecer para o mundo e para os incrédulos.
O mistério da germinação da flor jamais foi
desvendado. Durante muitos anos, a campa de Monsenhor Rios tornou-se um lugar
de visitação constante e até mesmo de peregrinações. Mas o tempo e os apelos da
vida moderna acabaram por empanar a lembrança de um pároco que consagrara sua
vida a Deus e ao bem de sua comunidade. Tudo levava a crer que o local seria,
lentamente, obliterado pelo desinteresse do ser humano, transformando o
fenômeno em algo corriqueiro e então deveras conhecido. Felizmente, a dedicação
e o respeito de um vassourense não permitiu que o jazigo fosse esquecido.
Assim, os ossos de lendário vigário foram resguardados num mausoléu tão simples
quanto fora sua andança pela terra. Hoje lá está apenas uma lápide com a
inscrição "Ao venerando e santo cônego Rios,
homenagem do professor Corrêa e Castro".
À cabeceira do túmulo, uma grade de ferro retangular protege o espaço da
centenária planta que, todo ano, abre-se em flor para lembrar aos visitantes,
na comemoração dos mortos, o vigário que dignificou a igreja com a nobreza de
seu trabalho e de seus exemplos.
O poeta Affonso Romano de Sant'Anna, que em
certa época visitou o túmulo com o amigo Turíbio Santos, publicou no jornal O
Estado de Minas que:
"É uma planta
pequena. Parece um coração. Ela lança uma haste de 30 ou 50 centímetros. Hoje
uma cerca de ferro a protege. Fotografei-a. Olho em torno da sepultura do
Monsenhor e vejo uma série de agradecimentos de crentes que receberam alguma
graça creditada a ele. Ficamos ali, Turíbio e eu, naquele sol esplendoroso
contemplando o escuro mistério. Conversamos com o coveiro. Ele convive com o
mistério e é bem humorado."
Monsenhor Rios não está inteiramente esquecido.
Quase cento e cinquenta anos após sua morte, há ainda pessoas que o honram e
homenageiam com a deposição de flores e velas votivas em seu sepulcro,
demonstrando com isso a fé e a esperança dos paroquianos vassourenses.
Segundo
Paulo Coelho Netto:
"Esse padre, prestando-se
na morte a ser o degrau dos vivos, impressionou-me suavemente, e eis porque me
abalancei a visitar o horto sereno de Vassouras - seu cemitério. Quis ver de
perto esse túmulo relicário que abre caminho para a morada dos humildes."
Segundo estudos botânicos, existem algumas
espécies de plantas de origem asiática denominadas "flores-cadáveres" que, de fato, exalam um mau cheiro
semelhante a carne podre destinado a atrair insetos para sua polinização.
Talvez a mais conhecida seja a Amorphophallus
titanum, chamada ainda de jarro-titã e flor-cadáver.
Tal espécie produz uma das maiores inflorescências do mundo.
De fato, quando desabrocha, ela pode alcançar três metros de altura e pesar até
75 quilogramas. Entretanto, a Flor de Carne de Vassouras detém duas
perguntas até hoje sem resposta: como ela surgiu no cemitério e porque só
aparece no dia de finados?