A curiosa higiene em fazendas e cidades coloniais

De fato, as funções fisiológicas eram exercitadas publicamente, à vista de todos, em qualquer hora ou lugar, sem pressas ou constrangimentos...

 25/09/2020     Historiador Sebastião Deister      Edição 311
Compartilhe:       

Entre os séculos XVI e XVIII experimentou-se, no Brasil, um período que hoje poderia ser classificado como "libertação escatológica". De fato, as funções fisiológicas eram exercitadas publicamente, à vista de todos, em qualquer hora ou lugar, sem pressas ou constrangimentos. Os manuais de etiqueta deste período ensinavam que o censurável não era a ação em si, necessária e normal, porém cumprimentar, olhar ou falar com alguém que a estivesse executando era considerado uma ação mal-educada e preconceituosa. Para ser polido, o cidadão que se deparasse com tal ato em público deveria fingir-se de cego, virar o rosto ou mudar seu caminho. Quando a "necessidade" se apresentava em plena rua, não havia como evitar o uso de qualquer canto mais discreto, sem nenhuma manifestação de pudor ou recato, até porque praticamente só existiam homens nas vias públicas, fossem livres ou escravos, já que as mulheres somente saíam aos domingos e sempre acompanhadas dos seus responsáveis, ou seja, pais, maridos ou irmãos. Por outro lado, há que se registrar que as mulheres grávidas, quando os ventres começavam a se avolumar, somente saiam às ruas em casos de extrema necessidade, evitando assim mostrar à sociedade, de forma acintosa, o "sexo praticado", ainda que o mesmo tivesse sido exercitado com seus maridos.

Também não se mostrava estranho o hábito de a população usar vielas e ruas para satisfazer as suas necessidades fisiológicas. Até mesmo D. João VI costumava fazer uso do indispensável penico nas suas andanças pelas ruas da cidade, e sempre que o organismo exigia, punha a cabeça para fora da carruagem e gritava ao cocheiro: "Lobato! Desejo obrar!", e o cocheiro, por sua vez, gritava avisando os acompanhantes do séquito ou as pessoas mais próximas: "O Rei quer obrar", parando em seguida para que fosse montado um pequeno aparato com os guardas cercando o regente para garantir sua "privacidade". Quanto à histórica falta de higiene pessoal demonstrada por D. João VI, o melhor exemplo é ter sido, aos 51 anos, obrigado pelo médico da Corte a tomar um banho para debelar uma infecção surgida numa perna devido a uma mordida de carrapato. Tal ocorrência motivou-o a comprar uma chácara no bairro do Caju, transformando-a em "Casa de Banhos". Em outra ocasião, o regente providenciou um barril furado dos lados, pois tinha pavor de ser mordido por siris, enfiou-se nele trajando um enorme camisolão e, levado por escravos, foi até a praia sendo arriado cuidadosamente dentro d'água. Documentos de época assinalam que essa medida drástica, com o uso de água salgada, contribuiu decisivamente para debelar sua infecção.

Os problemas intestinais de D. João VI foram herdados por seu filho, Dom Pedro I, que sofria de frequentes diarreias, uma delas certamente histórica, quando se encontrava às margens do Riacho Ipiranga. Segundo historiadores, o Príncipe tinha de "(...) se apear do cavalo de meia em meia hora para obrar". Nessa parada específica em São Paulo, viu-se abordado pelo mensageiro Paulo Bregaro que lhe entregou a decisão do Conselho de Estado que pedia a Independência do Brasil.

No Centro do Rio de Janeiro, ou seja, na capital cultural, social e econômica do país nos decênios finais do século XVIII e no início dos anos da centúria XIX não havia nenhuma medida de higiene coletiva por absoluta falta de saneamento público conhecido ou exequível. As casas não tinham banheiros e as necessidades eram feitas quase sempre nos quintais, numa "casinha" dotada de fossa sem esgoto - isto é, um simples buraco no chão -, normalmente limpa durante à noite por um escravo que recolhia a matéria sólida em tonéis conhecidos como "cabungos" ou "retretes", carregados sobre a cabeça e despejados em terrenos baldios próximos às residências ou então em um córrego longe da casa e até mesmo no mar. Como eram toscamente fabricados em madeira, os tonéis quase sempre vazavam parte da carga sobre os seus carregadores, tingindo-os de listras escuras, deixando-os extremamente emporcalhados, malcheirosos e apelidados pejorativamente de "tigres". Outro hábito pernicioso consistia em esvaziar os urinóis ou bacias cheios de dejetos em altas horas da noite ou bem cedo pela manhã, esvaziando-os pelas janelas e gritando "água vai!" segundos antes de arremessar o conteúdo para as ruas. A exigência do aviso em voz alta fora exigência estipulada por um decreto de 1776 baixado pelo Vice-Rei Dom Manoel da Silva Mascarenhas, o Marquês do Lavradio, que fora vítima das chamadas "águas-servidas" inesperadamente despejadas pelo líquido de um urinol matutino.

Ao longo dos anos oitocentos, e pelo menos até quase suas últimas décadas, as atividades de limpeza corporal eram reduzidas à lavagem de algumas partes do corpo. Para tanto, fazia-se uso da bacia com gomil (jarro de boca estreita), que servia para as pessoas lavarem o rosto e as mãos logo pela manhã. Bacias ou outros recipientes de louça eram objetos obrigatórios nos quartos das fazendas e engenhos, numa época em que não havia casas-de-banho ou água canalizada.

Viajantes que passaram pelo Brasil naquela época registraram seu espanto com a falta de hábitos higiênicos mais completos. Isto porque, entre os habitantes, era costume tomar no máximo quatro banhos por ano, quando se trocava a roupa de cima, enquanto a de baixo nunca era mudada. Tais peças íntimas, quando apodrecidas, eram atiradas ao lixo. Em relação aos banhos, a água era colocada numa tina, tendo o chefe de família o direito inquestionável de ser o primeiro a usá-la, sendo seguido pela mulher, pelos demais adultos e pelas crianças por ordem de idade, terminando pelos bebês, todos esfregados pelas mucamas, porém sempre sem substituir a água que, ao final de todas as lavagens, logicamente mostrava-se fétida e quase negra.

Não há registro confiável que informe a época em que os banheiros - ou, pelo menos, lavatórios mais higiênicos - surgiram nas casas-grandes das fazendas e engenhos do Vale do Paraíba. Sabe-se, contudo, que em meados do século XX muitas propriedades já tinham introduzido melhorias estruturais e arquitetônicas em seus espaços internos, transformando algumas áreas em espaços destinados ao uso privativo tanto de moradores quanto de visitantes, com isso eliminando, nos quintais, as históricas "casinhas sanitárias" (ver imagem) de séculos anteriores.