O racismo e as reações à violência racial em dois hemisférios
Em meio à pandemia, brasileiros negros que vivem nos Estados Unidos comparam as atitudes racistas e os protestos da população nos dois países
04/06/2020
Planeta Colabora
Edição 295
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A combinação da
pandemia e dos crimes racistas cometidos por autoridades foi o estopim para
disparar a bomba relógio que já estava sendo alimentada há anos. Não só os
negros, mas toda a sociedade parece ter chegado ao limite com as injustiças no
mundo, em especial nos Estados Unidos e no Brasil. Seria esse o motivo para as pessoas
irem às ruas, com raiva, arriscando suas vidas em meio a uma pandemia letal na
tentativa de reivindicar seus direitos e protestar contra crimes racistas? A
maioria acha que sim.
"No
Brasil, as pessoas desrespeitam os negros em todos os lugares, com ofensas e
xingamentos pesados, de teor racista, e tudo acaba com um pedido de desculpa
sem nenhuma consequência. Aqui nos EUA, os negros conhecem seus direitos e, por
isso, sabem como argumentar e reconhecer exatamente como são tratados" - Luis da Silva, diretor do escritório da Central
Única das Favelas em Nova York
Os
Estados Unidos estão no décimo dia de protestos, com milhares de pessoas nas
ruas em mais de 70 cidades, pedindo justiça por George Floyd, de 46 anos, negro
que foi sufocado por um policial branco no último dia 25 de maio em
Minneapolis, depois de detido sob suspeita de tentar usar uma nota falsa de US$
20 em um supermercado. O crime gerou uma explosão movida pela frustração
genuína e legítima ao longo de décadas de falha nas práticas policiais e no
sistema de justiça criminal nos EUA.
Indignação
semelhante aconteceu no Brasil quando, na mesma semana da morte de Floyd, o
menino João Pedro, de 14 anos, foi morto dentro de casa por policiais durante
uma operação em São Gonçalo, no Rio de Janeiro. A revolta dos negros
brasileiros, que também sofrem há anos com a brutalidade da polícia e o
preconceito da elite, só aumentou - lembrando que o Brasil foi o último país do
mundo a abolir a escravidão. Não demorou muito para os protestos contra o
racismo começarem no Brasil, influenciados pelos dos EUA. Mas até que ponto
podemos comparar essas histórias?
Conversamos
com brasileiros que vivem nos EUA e têm dupla nacionalidade. Luis da Silva mora
em Nova York desde 2005 e dirige o escritório da ONG Central Única de Favelas
(CUFA), que funciona num casarão no Brooklyn. "Não podemos nos esquecer que
essas rebeliões são consequências de vários fatores, inclusive nesse momento de
pandemia, em que as pessoas tiveram uma mudança de vida radical, principalmente
pobres e negros. Os protestos são quase como uma válvula de escape, manifestando
tudo ao mesmo tempo", analisa.
O
diretor da CUFA destaca a impunidade do racismo no nosso país. "Por mais que
tenhamos uma lei que diz que a prática do racismo é crime inafiançável, o
número de pessoas condenadas por racismo quase não existe. No Brasil, as
pessoas desrespeitam os negros em todos os lugares, com ofensas e xingamentos
pesados, de teor racista, e tudo acaba com um pedido de desculpa sem nenhuma
consequência", aponta. "Aqui nos EUA, os negros conhecem seus direitos
e, por isso, sabem como argumentar e reconhecer exatamente como são tratados.
Estamos protestando contra a polícia claramente racista e sabemos que existem
movimentos fascistas, nazistas por trás disso tudo. Isso tem que acabar, não há
mais espaço para o extermínio de gente preta".
Antes
de morar em Nova York, Luis foi um dos integrantes do grupo de rap Defensores
do Movimento Negro (DMN) durante 15 anos, e costumava dar palestras em
periferias e favelas paulistanas sobre racismo e autoestima. "O problema é
que os negros do Brasil ainda querem se ajustar ao universo branco por
acreditar que 'somos todos iguais', mas isso não passa de ilusão. Temos
culturas diferentes, somos descendentes de um continente diferente. O mais
importante é o respeito ? se não gostam da gente, não camuflem, assumam a
intolerância para que a gente não se iluda e crie nossas próprias condições de
prosperidade", afirma.
"Aqui, a Constituição é
estudada na escola, o discurso é inclusivo e eles fazem parte da nação, dando o
poder de argumentar e conhecer seus direitos. Ao contrário do Brasil, em que o
governo prefere deixar o povo cego, o que nos deixa sem saber como nos
defender" - Monica Costa, empresária brasileira que mora no estado
americano de Maryland
O
diretor do escritório da CUFA em Nova York também chama a atenção para a
passividade do negro brasileiro em comparação ao americano. "Os brasileiros
se acostumaram com essa situação constante, o que não faz nenhum sentido.
Existem algumas lutas a serem travadas, como fazer com que as leis de proteção
ao ser humano sejam realmente respeitadas e que atos racistas sejam punidos.
Também gostaria que o nosso povo não se deixasse dividir por classes sociais,
graus de instrução e categorias artísticas, porque isso acaba os distanciando
naturalmente da maioria pobre e preta do Brasil para atenderem a uma categoria
mais intelectualizada sobre a questão racial", acrescenta.
Existe
solução? "A melhor saída é que não importa se é negro de favela ou doutor; a
nossa luta tem que ser por justiça. Gostaria que os bons policiais abrissem a
boca e falassem algo contra essa brutal desumanidade, para que realmente
possamos acreditar que eles não estão a serviço dessa corporação e aceitando
tudo calados", frisa.
Com
a mesma linha de pensamento de Luis, a carioca Monica Costa, que se mudou há 33
anos da favela em Santa Teresa, no Rio de Janeiro, para Maryland, nos EUA,
afirma que existe uma grande diferença na formação dos negros americanos e dos brasileiros:
a escola pública de qualidade é uma das grandes vantagens americanas. "Aqui,
a Constituição é estudada na escola, o discurso é inclusivo e eles fazem parte
da nação, dando o poder de argumentar e conhecer seus direitos. Ao contrário do
Brasil, em que o governo prefere deixar o povo cego, o que nos deixa sem saber
como nos defender", argumenta.
Monica
- hoje empresária bem-sucedida e dona da empresa de mecânica Wilniq Auto Body
& Mechanical Repairs - destaca a importância dos protestos contra o racismo
e a falta de humanidade na pandemia, quando o povo preto ainda é tratado com
menos valor. "Os protestos são a única maneira que temos de sermos ouvidos.
Só somos ouvidos quando entramos em ação e fazemos barulho. Como mulher negra,
mãe de dois filhos, é muito frustrante ver isso tudo acontecendo aqui. Já temos
evidências suficientes de que esse jogo não é justo", disse ela,
acrescentando que, segundo estudos feitos por entidades americanas, qualquer
pessoa que chega aos EUA sem documentos, entre dois a três anos morando no
país, já está fazendo mais dinheiro do que qualquer negro cidadão americano
formado por uma faculdade.
Foto
1 - Manifestação em Nova York contra a morte de George Floyd, negro assassinado
por policiais brancos em Minneapolis (EUA): protestos contra racismo lá e aqui
no Brasil. (Johannes EISELE / AFP)
Foto
2 - Manifestação batizada de "A Vigil and March for Black Lives" ("Uma vigília
e marcha pelas Vidas Negras") em Nova York (EUA) nesta terça-feira, 2/6: sétimo
dia consecutivo de protestos contra a violência racial e homenagens às vítimas.
(Foto: Viviane Faver)
Foto
3 - Luis da Silva mora em Nova York desde 2005 e dirige o escritório da ONG
Central Única de Favelas (CUFA): "Por mais que tenhamos uma lei que diz que
a prática do racismo é crime inafiançável, o número de pessoas condenadas por
racismo quase não existe". (Foto: Arquivo pessoal)
Foto
4 - A empresária brasileira Monica Costa, radicada nos Estados Unidos: "Só
somos ouvidos quando entramos em ação e fazemos barulho". (Foto: Arquivo
pessoal)