Cavaru e a encruzilhada do Lucas
Paraíba do Sul, no tempo e na história
01/11/2024
Historiador Sebastião Deister
Edição 514
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O topônimo Cavaru, designando até hoje um antigo
e modesto povoado nos costados mais a sudoeste de Paraíba, deriva da língua
Tupi. Segundo o professor Arnaud Pierre, trata-se, na realidade, da corruptela
da palavra "cavalo" que, pronunciada pelo índio puri da época, soava como "cabáru"
ou "cabarú" para os portugueses que, em sua fala reinol, acabaram trocando o "b"
pelo "v" e consagraram tal denominação no antigo ponto de colonização fundado
por Garcia Rodrigues Paes no sertão paraibano. Tal tese, aliás, foi defendida
por Frei Aurélio Stulzer em seu trabalho "NOTAS PARA A HISTÓRIA DA VILA DE PATY
DO ALFERES", razão pela qual acreditamos ser esta, de fato, a origem de um nome
tão diferente e curioso aposto naquela localidade.
Cavaru é, por
certo, o arquétipo de todas as roças implantadas por Garcia ao longo do Caminho
Novo de Minas. De fato, o local era um dos pontos indispensáveis para tropeiros
e viajantes que demandavam aquelas terras ainda incultas, pois ali suas mulas e
outras alimárias não apenas descansavam, e eventualmente pernoitavam, como
ainda se alimentavam do milho tão necessário à sua subsistência e se valiam da
presença de límpidas e fartas águas locais.
O logradouro de Cavaru localiza-se sobre o
ribeirão do Inema, cujas margens certamente foram utilizadas pelos indígenas e
posteriormente por Garcia para, a partir da Paraíba, chegar até aquela fértil
região. É bem plausível que o bandeirante deva ter priorizado os primevos
caminhos rasgados nas matas pelos puris, já que tais veredas mostravam-se
adequadamente retilíneas e seguras e evitavam, com aguda sensatez, as perigosas
e cansativas encostas das montanhas. Perspicaz e prático em suas decisões,
Garcia tinha perfeita noção de que os muares subiam sem problemas as rampas por
vezes penosas dos caminhos, muito embora carregassem sobre si as cangalhas cujo
peso eventualmente alcançava 10 arrobas (cerca de 150 quilos). Ideais para esse
trabalho, esses animais apresentavam um ótimo desempenho em terreno seco e uma
inigualável firmeza nos declives, desde que os trajetos se mantivessem
afastados de atoleiros ou das margens dos rios, nos quais, com certeza, eles ficariam
submersos sob o formidável incômodo de sua carga. Isto explica a razão pela
qual os velhos caminhos da serra eram, de um modo geral, abertos ao longo dos
sopés das colinas, sempre se valendo das primitivas e inteligentes trilhas
deixadas pelos índios.
Colinas ensolaradas, outeiros mais agudos,
aclives escorregadios e declives
estafantes, bosques desconhecidos e matas escuras, escarpas desafiadoras e
lodaçais intimidantes não faltaram à frente dos passos de Garcia, tanto no
chamado Sertão da Paraíba - aquele então imenso e silencioso vazio aninhado
entre a Serra do Mar e o rio Paraibuna - quanto na Mantiqueira de Baixo, ou
seja, a área compreendida entre o rio Paraibuna e a serra mineira, terras por
ele domadas após sua monumental obra de reconhecimento e povoamento de nossos
sertões.
Cumpre destacar que foi a partir de Cavaru que
Garcia e seus comandados subiram a Serra da Sucupira para, logo à frente,
alcançar o vale do rio Secretário, desenvolvendo-se junto a essa área toda a
vida daquele posto de repouso. Com o tempo, a Fazenda Sucupira tornou-se famosa
pela sua riqueza e pela abundância de sua produção, uma vez que abastecia
prodigamente todas a caravanas que por lá transitavam. Junto dela, a propósito,
funcionou pelos meados do século XIX um importante e concorrido colégio para
alunos internos, frequentado, principalmente, pelos filhos dos abastados
fazendeiros da região.
Até hoje, dorme ali um vivo testemunho das
atividades humanas e sociais da Sucupira, representado pelo cemitério de
Cavaru, bem às margens do célebre caminho Novo de Minas e iniciado em 1843 por
Antônio Gomes da Cruz, o renomado patriarca da família estabelecida na área de
Cavaru em finais do século XVIII, quando naquelas plagas os Gomes da Cruz
abriram a Fazenda de Santo Antônio e administraram, também, a Fazenda Pau
Grande.
Também em Cavaru encontramos, ainda hoje, a
velha estaçãozinha ferroviária, lembrança dos áureos tempos da Maria Fumaça em
nossa região, cujas dependências atualmente voltam-se para as atividades
sociais patrocinadas pela Prefeitura do Município de Paraíba do Sul.
Já a chamada Encruzilhada do Lucas é, com
certeza, um dos mais antigos bairros de Paraíba do Sul, nascido na terceira
década do século XVIII, quando Bernardo Soares Proença dali iniciou sua conexão
com o Caminho Novo de Garcia. Deve-se lembrar que Lucas não se refere a
qualquer eventual personagem da região, mas tão simplesmente ao ribeirão
formado logo após a Ponte-do-Lucas pela junção dos córregos Inema e do Caolho.
Apesar de bem modesto em suas proporções, o riacho acabou por se mostrar muito
importante para a Paraíba, pois sua cachoeira, com uma queda de 25 metros, teve
aproveitada a energia criada por suas águas quando da construção da primeira
usina de eletricidade de Paraíba do Sul, obra creditada aos irmãos Gregório e
Alexandre Spina, em novembro de 1910.
Os índios da região chamavam a queda d'água do
lugar de "iruca" - termo que, em seu vocabulário nativo, significava "barulhento"
- e, por corruptela, os portugueses vieram a designar o pequeno rio como "Lucas".
Garcia Rodrigues Paes chegou ao vale do
córrego do Inema (nome também derivado do linguajar puri, significando "rio
sinuoso") para alcançar a encruzilhada que, tempos depois, Proença usaria como
ponto de partida para a sua própria estrada, cobrindo de pronto a avenida em
rampa que dali partia e seguindo direto pelo Jatobá. Atravessado aquele
remanso, o bandeirante obrigou-se a subir o morro logo à frente, uma vez que
uma enorme pedreira bloqueava o acesso pela margem do riacho. Curiosamente, tal
pedreira forneceria, entre os anos de 1836 e 1837, todo material necessário
para a feitura dos pegões e pilares da ponte do Paraíba, levantada pelo Barão
de Mauá, cujos vãos inferiores acabaram por formar, bem ao nível das águas do
rio, uma ampla passagem logo batizada pelos paraibanos de "rua-de-baixo."
Na área hoje ocupada pelo amplo Parque de
Exposições de Paraíba do Sul erguia-se o grande Rancho da Encruzilhada do
Lucas, cujos fundos voltavam-se para a confluência dos córregos mencionados e
que teve suas características descritas de forma bem clara pelo afamado Auguste
de Saint-Hilaire, quando de sua passagem pelo lugar no ano de 1822.
O Rancho era o pouso de pernoite preferido por
todos os viajantes da época, que detestavam dormir ou simplesmente descansar no
Rancho da Praia da Barca. Neste, segundo eles mesmos diziam, era humanamente
impossível conseguir um pouco de tranquilidade e silêncio, pois diariamente - e
praticamente vinte e quatro horas por dia - encontrava-se atravancado de
cangalhas de tropeiros e centenas de vitualhas, sendo perturbado pela gritaria
de curibocas abusados e envolvido pela inconveniência de arrieiros desaforados
que se encharcavam com a cachaça vendida pelo empório de Garcia, aberto bem à
frente da Praia da Barca.
IMAGEM: Antiga estação ferroviária de Cavaru