1938 o ano da peste em Miguel Pereira
Em 1938, a incipiente Distrito de Miguel Pereira viu-se às voltas com uma tragédia inesperada e mortal: uma irrupção de peste bubônica nascida a partir do péssimo armazenamento de alimentos nos estoques do velho armazém
22/05/2020
Historiador Sebastião Deister
Edição 294
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Em 1938, a incipiente Distrito de Miguel
Pereira viu-se às voltas com uma tragédia inesperada e mortal: uma irrupção de
peste bubônica nascida a partir do péssimo armazenamento de alimentos nos
estoques do velho armazém administrado por Calmério Rodrigues Ferreira (o
Juju). De fato, a inexistência de refrigeradores, a falta de informações sobre
higiene básica na manipulação de víveres essenciais, o não conhecimento de
serviços apropriados de saúde e o descuido involuntário com o acúmulo de
mantimentos facilmente perecíveis - como cereais, linguiças, toucinho, salame,
presuntos, açúcar, carne seca e queijos, entre outros - criaram um campo
nutritivo no qual as bactérias, o mofo e um verdadeiro exército de baratas,
carunchos, besouros e ratos famigerados multiplicavam-se às centenas e
circulavam sem maiores problemas pelos cantos e corredores do empório mais
conhecido da cidade, devorando, roendo, contaminando e destruindo de forma
implacável tudo que o encontravam pela frente.
As mortes causadas
Num abrir e fechar de olhos, quatro preciosas
vidas foram ceifadas pelo invisível e implacável carrasco da peste. Morriam, de
súbito, Siloc Rodrigues Ferreira e Nilton Rodrigues Ferreira (dois irmãos), o
primo Enéas de Almeida Machado e Sebastião (tio de Enéas), todos, portanto,
membros de uma mesma família. Outro jovem de 16 anos, de apelido Zinho,
empregado do mesmo armazém, e mais cinco pessoas mostraram-se infectados, mas
não pereceram.
Na verdade, suspeitou-se na época que a peste
teria chegado através de um carregamento de arroz já infectado vindo de Minas
Gerais, mas isto se tornou irrelevante em face do perigo que tal moléstia
representava para uma vila onde os recursos médicos eram limitados e o
atendimento hospitalar simplesmente não existia. Tal suposição, entretanto,
logo foi descartada pelo Dr. Osvaldo de Araújo Lima, que garantiu ser a
moléstia causada por uma bactéria transmitida por pulgas infectadas que se
multiplicavam nos ratos. Ao picar o ser humano, o inseto inocula o
microrganismo, e com o agravamento dos sintomas, a doença pode então ser
transmitida por espirros, pela saliva ou mesmo contato com possíveis feridas
das pessoas atingidas. Segundo ele, tal cadeia de ocorrências deve ter atingido
o armazém de Juju, mas para sorte da maioria da população o surto ficou
confinado àquele espaço, o que facilitou seu diagnóstico e, principalmente, seu
controle imediato.
Felizmente, a imediata e corajosa ação dos
médicos locais logrou restringir o mal, circunscrevendo sua presença a apenas
Miguel Pereira e evitando sua disseminação para outros logradouros. Contagiosa,
assustadora e inapelável, a peste obrigou o isolamento das demais casas
comerciais e a desinfecção dos trens que seguiam para Japeri e Três Rios (todos
cruzando a cidade lacrados e sem paradas -
ver imagem), afastou visitantes e turistas, fez diminuir as compras no
armazém, paralisou obras na cidade e até mesmo levou os religiosos a fazerem
promessas e a buscarem salvação junto ao vigário Frei Leandro Nowak, na Igreja
de Santo Antônio.
Os profissionais médicos da época,
intimoratos e decididos, mergulharam de corpo e alma naquela guerra inesperada
e ingente, não medindo esforços, despesas e cuidados e até mesmo arriscando sua
própria integridade física: Dr. Osvaldo de Araújo Lima (o primeiro a diagnosticar
a doença), Dr. Radamés Marzullo, Dr. João Plínio Werneck e Dr. Antônio Ferreira
do Amaral, além do farmacêutico Bonifácio de Macedo Portela, tomaram a
vanguarda da batalha, inclusive buscando no Rio de Janeiro colegas médicos,
enfermeiros, medicamentos e orientações profiláticas para debelar a insidiosa
moléstia.
A repercussão da notícia
Jornais da época (ver reproduções) cobriram os fatos de maneira objetiva e sem
grandes sensacionalismos, colaborando assim para que aquela tragédia fosse
encarada com seriedade no Rio de Janeiro. Com isso, a imprensa levou as
autoridades a encetar um imediato trabalho de socorro para Miguel Pereira,
cujos resultados traduziram-se na eliminação da enfermidade em tempo
relativamente curto em função dos trabalhos especializados trazidos à serra
pelo Dr. Mário Pinotti, então Chefe da Equipe de Sanitaristas da Divisão de
Saúde Pública da capital (Niterói).
Em face da doença, os comerciantes da época
logo passaram a cuidar de seus estoques de alimentos com maior atenção, e o
Departamento de Saúde Pública do Estado do Rio providenciou a pronta vacinação
da população (não somente contra a peste, mas também para a cólera e o tifo),
prevenindo a cidade de eventuais epidemias ou surtos provocados por roedores,
insetos ou então pela água não tratada.