A Fazenda Quindins e seus primórdios
Memórias de Paty do Alferes
03/05/2024
Historiador Sebastião Deister
Edição 498
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A vida diária diametralmente oposta entre Paty do
Alferes e sua vizinha Estiva (que no início da década de 1920 seria rebatizada
como Professor Miguel Pereira) determinou características e peculiaridades bem
diferentes no estilo pessoal de suas famílias pioneiras, em seus meios básicos
de subsistência e, em especial, na arquitetura das residências que surgiam,
aqui e ali, no território da então chamada Roça do Alferes de Serra Acima. De
fato, as inúmeras estirpes que colonizavam as terras patienses nos estertores
do século XIX e nos proêmios da centúria XX procuravam, na maior parte dos
casos, colocar o sinal de sua autoridade nas construções que erguiam,
conferindo-lhes um cunho pessoal e até mesmo pré-moderno que as distinguisse da
herança advinda dos tempos coloniais e pós-imperiais, pondo em prática linhas
estruturais mais simples e funcionais, posto que firmes e seguras.
Assim, a Freguesia de Nossa Senhora da Conceição de
Serra Acima da Roça do Paty do Alferes- oriunda de uma era campesina à qual se
mesclou a criativa e forte participação do negro escravizado agregado nas
fazendas da região -, acompanhou em suas terras o surgimento de um conjunto
arquitetônico elegante e refinado, no qual destacavam-se alguns austeros
sobrados cujas fachadas remetiam ao neoclassicismo. Normalmente, no arcabouço
desses prédios encaixavam-se imensas portas lavradas em valiosa madeira de lei,
aplicavam-se ornatos salientes e coloridos a fim de proteger dezenas de janelas
cujos vidros numerosos, coroados por bandeiras vivas e matizadas, permitiam a
boa iluminação de seus vastos salões, construíam-se platibandas alargadas para
o devido escoamento das águas de chuva, fixava-se o forro do teto e prendiam-se
as tábuas compridas do assoalho lustroso e rangente, planeando-se, ao mesmo
tempo, a disposição de múltiplos aposentos para o conforto de seus
proprietários, de seus familiares e eventuais visitantes e convidados,
destacando-se em tal conjunto estrutural uma ambiência sempre resguardada e
adornada por jardins amplos e multicoloridos. No interior dos casarões, solares
e palacetes, a nobreza da vila patiense realizava com alegria suas festas
distintas, políticos debatiam as novidades da Corte, as sinhás trocavam
receitas e fuxicos e muitos casais oficializavam seus matrimônios, grande parte
deles, aliás, consolidada por pura conveniência familiar, política ou
financeira.
A arquitetura patiense pós-imperial, em contraponto
às casas mais modestas encontradas na vizinha Vila da Estiva, é bem típica das
décadas finais do século XIX: amplas e majestosas portas duplas de madeira de
lei maciça, planejadas de forma a permitir a entrada e saída dos pesadíssimos e
imensos móveis da época; espaçosos e arejados salões, nos quais se estendiam
longas mesas de jantar destinadas a receber as numerosas pessoas de uma mesma
família ou a recepcionar frequentes e ilustres convidados; múltiplos e
ventilados aposentos pessoais reservados à abundante prole da casa e quartos
especiais para os hóspedes mais prestigiosos, além de portas internas bem
largas entre os vários cômodos a fim de que as matriarcas empertigadas e suas
filhas pudessem transpô-las sem o incômodo e o vexame de verem seus rodados e caros
vestidos presos nos seus alizares de sustentação.
Por seu turno, as notícias mais remotas relativas à
Fazenda Quindins remetem-se a um dos seus primeiros proprietários, o sesmeiro
José Maria Guadalupe, que pouco antes de falecer, em 1864, transferira a
propriedade para o filho Justino de Azevedo Ramos. Cumpre lembrar que o
Sargento-Mor José Maria de Guadalupe era filho de Manoel de Azevedo Ramos e de
Ana Maria Werneck, sendo, portanto, neto de Manoel de Azevedo Matos, o fundador
da Fazenda de Nossa Senhora da Piedade de Vera Cruz. Em anos anteriores à
transferência mencionada, José Maria administrara com êxito grandes plantações
nas glebas adstritas à Fazenda Manga Larga. Guadalupe e sua esposa Maria Luiza
d'Oliveira Werneck tiveram, além de Justino de Azevedo Ramos, os filhos Antônio
de Azevedo Ramos, Francisco de Azevedo Ramos e Fernando Luís dos Santos
Werneck, os três últimos com passagens bem relevantes na administração da Manga
Larga, em especial após o ano de 1789, quando deram partida à construção da
Fazenda Manga Larga de Cima, propriedade complementar da pioneira Manga Larga
de Baixo. Entretanto, em 1853 o Sargento-Mor José Maria de Guadalupe vendeu 373
braças de frente (cerca de 680 m) x 1500 braças de lado (aproximadamente 2.,730
m) da fazenda Manga Larga de Cima ao Comendador Francisco das Chagas Werneck,
seu primo direto, traçando assim uma linha divisória com a cachoeira da Manga
Larga, mantendo a Manga Larga de Baixo sob sua administração direta. Portanto,
no ano de 1853 a fazenda Quindins já existia com tal denominação, sendo, assim,
impossível determinarmos, com rigor histórico, o ano de sua criação e o autor
de tal titulação.
Entretanto, Justino não comungava do interesse do
pai e dos irmãos pela administração de terras, e de pronto negociou-as com
Manoel Francisco Bernardes que, à época, já possuía a Fazenda Retiro junto ao
povoado da Estiva. A propósito, nas dependências desta propriedade viria à luz
toda a família de Manoel Francisco que, anos depois, passaria para Paty do Alferes
a fim de administrar Quindins e ligá-la, em definitivo, ao sobrenome Bernardes.
A propriedade, então, passou a receber modificações, restaurações, intervenções
e ampliações mais contemporâneas em seus compartimentos internos e
externos.
Uma vez que todos os bens de raiz aglutinados a
Quindins configuravam numerosos terrenos, muitos deles, a propósito, bastante
distanciados entre si, Manoel e a esposa Joaquina de Mello decidiram vender
alguns deles em 1867, sendo que entre seus compradores encontravam-se Estêvão
Pimenta de Moraes e Manoel Francisco de Oliveira Xavier, este arrematador de um
lote prontamente vendido ao amigo e fazendeiro Francisco Bernardes Gomes,
parente de costado de Manoel Francisco.
Seria interessante registrar que Estêvão Pimenta de
Moraes tornou-se lavrador e fazendeiro de grandes posses na área de Paty do
Alferes. De fato, já na metade da centúria XIX Estêvão possuía uma gleba
considerável nas proximidades da Fazenda Manga Larga. Outro sítio de grandes
proporções por ele administrado foi o chamado Buraco, que confrontava com os
terrenos do vizinho Francisco Bernardes Gomes e que alcançava também alguns
limites com as terras de Gil Francisco Xavier, estas infletidas para as bandas
da Fazenda Freguesia. Por outro lado, os lotes comprados a Manoel Francisco
Bernardes serviram para Estêvão construir a Fazenda Fortaleza (hoje
desaparecida) bem próxima de Quindins, propriedade que foi, por muitos anos,
uma referência social e rural na antiga Paty do Alferes.
IMAGEM: Primeiro e
pioneiro prédio da Fazenda Quindins