O Sertão da Parahyba - Primeiros Tempos
Paraíba do Sul, no Tempo e na História
19/07/2024
Historiador Sebastião Deister
Edição 508
Compartilhe:
As largas planuras e
as altivas colinas resguardas por matas no vale médio do rio Paraíba do Sul
foram batizadas tão simplesmente de "SERTÃO
DA PARAHYBA" pelos seus fundadores e assim conhecidas por numerosos
exploradores pelo menos até a metade do século XIX. Durante um largo período de
tempo, o único ponto de civilização daquela vasta área era representado por um
pioneiro campo de trabalho estabelecido no ano de 1683 pelo sertanista Garcia
Rodrigues Paes, o filho dileto e herdeiro de Fernão Dias Paes, o conhecido
Caçador de Esmeraldas.
Nos primeiros anos
(entre 1683 e 1699) Garcia e seus comandados ergueram tão-somente pequenas
vivendas e pontos de repouso de tropas, configurando, desse modo, o canteiro de
obras destinado a servir de base para a abertura do caminho que ligaria Minas
ao Rio de Janeiro.
Em seus primórdios,
a propriedade organizada por Garcia não representava com precisão um
estabelecimento fazendário, se considerarmos que tal designação hoje pressupõe.
Tratava-se, a bem da verdade, de um grupo de barracas e choupanas um tanto
toscas ocupadas por curibocas armados (ou caribocas, mestiços de índios e
brancos) e companheiros de Garcia conduzidos até aquele local pelo bandeirante
na intenção precípua de evitar que outros exploradores se declarassem donos de
um remanso fértil que ele lograra encontrar naquele trecho do rio. É de se
supor que Garcia tão-somente pretendesse introduzir junto a esse pioneiro
rossio a base de suas operações exploratórias em busca de um caminho que mais
rapidamente conectasse as ricas terras mineiras com o Rio de Janeiro, ou seja, "(...) o mais perto caminho que poderia
haver entre as minas e o mar (...)". Todavia, Garcia e seus agregados
viram-se obrigados a esperar cerca de 15 anos pela conclusão de tal tarefa, e
nesse interregno levantaram como marco de posse da área uma pequena capela numa
ilha com praia de aluvião, nela abrindo roças de subsistência e albergando com
segurança alguns índios puris indóceis e, por vezes, belicosos, ali retidos à
base de espingardas e ameaças.
Na realidade, quando
o jovem bandeirante (com vinte anos) chegou àquelas paragens - por volta do
segundo semestre de 1681 - deparou-se com um arquipélago fluvial que, à
primeira vista, poderia desanimar homens menos destemidos. Garcia não era, entretanto,
indivíduo de se deixar abater por dificuldades, e de imediato tratou de ligar
algumas pequenas ilhas através de aterros seguros, formando assim uma ampla
esplanada sobre a qual levantaram-se ranchos para tropeiros e futuros
viajantes. Em um ponto logo abaixo do rio, fechou-se ainda a boca do canal da
ilha que surgia, e nela Garcia construiu a capela de Nossa Senhora da
Conceição, escolhida como padroeira do arraial que ali começava a se
estruturar.
Já que se formara
uma ilha alta e comprida, a oclusão de sua embocadura protegeu todo o
arquipélago das formidáveis cheias do rio, o que por certo facilitou o rápido
arruamento da área destinada ao estacionamento das tropas exploradoras lideradas
pelo sertanista. É quase certo que essas atividades tenham consumido cerca de
dois anos de exaustivo trabalho, mas graças a elas Garcia e seus subordinados
finalmente conseguiram instalar um canteiro-de-obras que serviria de base para
a abertura do Caminho Novo de Minas conectando as terras mineiras à corte instalada
no Rio de Janeiro.
Claro está que, para
transpor o rio, os desbravadores necessitavam de embarcações adequadas. Como a
correnteza do rio represava grandes quantidades de aluvião junto ao remanso, o
material acumulado junto à margem acabou por servir de "praia" para a atracação
das balsas, transformando-se, por consequência, num pequeno, porém seguro cais
de embarque e desembarque de tropas e variados produtos essenciais aos
desbravadores (produtos da caça e da pesca,
botas, frutos, raízes comestíveis, armas como mosquetões, espingardas e
arcabuzes, chapéus de abas largas, gibões, cobertores, caldeirões, caçarolas,
rações para as montarias e demais provisões humanas etc.).
Aos poucos, a
largura do rio foi se comprimindo em função dos aterros construídos para a
formação da esplanada das caravanas, estreitamento ainda mais acentuado pelas
constantes cheias que minavam o aterro original. Tal processo destrutivo acabou
por se consolidar ainda mais quando do levantamento de um pequeno embarcadouro
de proteção do nascente arraial. Foi junto a essa praia improvisada, contudo,
que Garcia ergueu seu rancho e sua venda partindo, dali para rasgar o caminho
que possibilitaria a ocupação de todo o "Sertão
da Parahyba."
De acordo com as
notas do professor sul-paraibano Arnaud Pierre, é importante lembrar que a data
de fundação daquela aldeola em 1683, tão anterior ao início da abertura do
Caminho Novo (em 1699), gerou dúvidas junto a alguns respeitáveis
historiadores, entre eles Afonso Taunay que, passando pela Paraíba apenas uma
vez, não se deu conta da existência do remanso do rio e logo evidenciou o seu
ceticismo em relação ao surgimento do povoado em ano tão longínquo. Por outro
lado, Capistrano de Abreu, em sua visita à cidade em 1902, dedicou grande parte
de seu tempo a observar o lugarejo e a caminhar pela margem do rio, comprovando
ali sua tese sobre a abertura dos caminhos coloniais, com isso atestando a
época da primeva colonização daquelas terras desconhecidas.
A vasta área da futura Paraíba do Sul abrigava largas roças de
mantimentos destinados tanto ao consumo básico da fazenda de Garcia e de outros
ranchos a ela agregados quanto para o comércio direto com os viajantes do
Caminho Novo, atividades que, por sinal, não apenas se mostravam necessárias,
mas também bastante lucrativas naqueles sertões tão isolados e carentes. Dentre
os produtos cultivados em maior escala, destacavam-se o milho, gramínea
indispensável na dieta dos habitantes e na preparação da ração para aos animais
de carga e montarias, os quais cruzavam as terras das fazendas a toda hora,
naquele sôfrego ir-e-vir entre o Rio e as Minas. Outras culturas, mesmo
exibindo menores proporções, também significavam uma base fundamental de
sobrevida no sertão, como o feijão, a mandioca, a mamona, o arroz, os legumes e
as verduras. Por outro lado, não foram encontrados registros confiáveis que
dessem conta do cultivo racional e sistemático de árvores frutíferas pelas
primitivos moradores da Paraíba, à parte, naturalmente, das já conhecidas
bananeiras, palmeiras e laranjeiras.
Por sua vez, a caça e a pesca eram atividades quase rotineiras na região,
embora estivessem direcionadas inteiramente para o consumo local. Com efeito, a
caça não se apresentava apenas indispensável na alimentação humana.
Praticando-a, os pioneiros ali radicados livravam-se por vezes da constante
ameaça dos animais selvagens e ferozes que se escondiam nas extensas matas que
vestiam a maior parte daquela região ignota.
Outro trabalho
intenso era representado pelo extrativismo vegetal. Nas florestas, colhiam-se
ótimas quantidades de madeira de lei, utilizada na construção de casas e na
fabricação de barcos e canoas diariamente empregados na travessia do Paraíba,
destacando-se, neste mister, tapinhões-de-torso-reto, o sôbro, a peroba
vermelha, a grapiapunha amarelo-claro ou carregada, as cacundas, a arariba, o
óleo vermelho, o óleo pardo, o jacarandá, o vinhático, o pau-brasil, o louro e
o pau-ferro entre outras. Finalmente, o palmito - tão típico das colinas e dos
bosques que vicejavam pelas várzeas paraibanas - era largamente consumido pelas
famílias locais.
Imagem: Canteiros de obras de Garcia na
Paraíba em finais do século VII (segundo o professor Arnaud Pierre)