"Sem o SUS, é a barbárie", Drauzio Varella
Talvez você não saiba que, naquela época, só os brasileiros com carteira assinada tinham direito à assistência médica pelo antigo INPS.
23/08/2019
Opinião
Edição 256
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"Sem o SUS, é a
barbárie". A frase não é minha, mas traduz o que penso. Foi dita por
Gonzalo Vecina, da Faculdade de Saúde Pública da USP, um dos sanitaristas mais
respeitados entre nós, numa mesa redonda sobre os rumos do SUS na Fundação
Fernando Henrique Cardoso. Estou totalmente de acordo com ela pela simples
razão de que pratiquei medicina por 20 anos antes da existência do SUS.
Assistência médica só para os que
tinham carteira assinada
Talvez você não saiba que, naquela época, só os
brasileiros com carteira assinada tinham direito à assistência médica pelo
antigo INPS. Os demais pagavam pelo atendimento ou faziam fila na porta de meia
dúzia de hospitais públicos espalhados pelo país ou dependiam da caridade
alheia, concentrada nas santas casas de misericórdia e em algumas instituições
religiosas.
Os trabalhadores informais eram
considerados indigentes sociais
Eram enquadrados na indigência social os trabalhadores
informais, os do campo, os desempregados e as mulheres sem maridos com direito
ao INPS. As crianças não tinham acesso a pediatras e recebiam uma ou outra
vacina em campanhas bissextas organizadas nos centros urbanos, de preferência
em períodos eleitorais.
Então, 30 anos atrás, um grupo de visionários ligados à
esquerda do espectro político defendeu a ideia de que seria possível criar um
sistema que oferecesse saúde gratuita a todos os brasileiros. Parecia divagação
de sonhadores.
Ao saber que se movimentavam nos corredores do Parlamento
para convencer deputados e senadores da viabilidade do projeto, achei que
levaríamos décadas até dispor de recursos financeiros para a implantação de
políticas públicas com tal alcance. Menosprezei a determinação, o compromisso
com a justiça social e a capacidade de convencimento desses precursores.
Em 1988 começa a mudança
Em 1988, escrevemos na Constituição: "Saúde é direito do
cidadão e dever do Estado". Por incrível que pareça, poucos brasileiros sabem
que o Brasil é o único país com mais de 100 milhões de habitantes que ousou
levar assistência médica gratuita a toda a população.
Falamos com admiração dos sistemas de saúde da Suécia, Noruega,
Alemanha e Reino Unido sem lembrar que são países pequenos, organizados, ricos e
com tradições de serviços de saúde pública instalados desde o fim da Segunda
Guerra Mundial.
Sem menosprezá-los, garantir assistência médica a todos
em lugares com essas características é brincadeira de criança perto do desafio
de fazê-lo num país continental, com 210 milhões de habitantes, baixo nível
educacional, pobreza, miséria e desigualdades regionais e sociais das dimensões
das nossas.
Para a maioria dos brasileiros, infelizmente, a imagem do
SUS é a do pronto-socorro com macas no corredor, gente sentada no chão e fila
de doentes na porta. Tamanha carga de impostos para isso, reclamam todos.
Os programas de transplantes e de vacinações
do SUS são os maiores do mundo
Esquecem-se de que o SUS oferece gratuitamente os maiores
programas de vacinações e de transplantes de órgãos do mundo. Nosso programa de
distribuição de medicamentos contra a Aids revolucionou o tratamento da doença
nos cinco continentes. Não percebem que o resgate chamado para socorrer o
acidentado é do SUS, nem que a qualidade das transfusões de sangue nos
hospitais de luxo é assegurada por ele.
Nossa Estratégia Saúde da Família, com agentes
comunitários em equipes multiprofissionais que já atendem de casa em casa dois
terços dos habitantes, é citada pelos técnicos da Organização.
O SUS é o maior e o mais democrático
programa de distribuição de renda do país
Pouquíssimos têm consciência de que o SUS é, disparado, o
maior e o mais democrático programa de distribuição de renda do país. Perto
dele, o Bolsa Família não passa de pequena ajuda. Enquanto investimos no
SUS cerca de R$ 270 bilhões anuais, o orçamento do Bolsa Família mal
chega a 10% disso.
Os desafios são imensos
Os desafios são imensos. Ainda nem nos livramos das
epidemias de doenças infecciosas e parasitárias e já enfrentamos os agravos que
ameaçam a sobrevivência dos serviços de saúde pública dos países mais ricos:
envelhecimento populacional, obesidade, hipertensão, diabetes, doenças
cardiovasculares, câncer e degenerações neurológicas.
Ao SUS faltam recursos e gestão competente para
investi-los de forma que não sejam desperdiçados, desviados pela corrupção ou
para atender a interesses paroquiais e, sobretudo, continuidade administrativa.
Nos últimos dez anos, tivemos 13 ministros da Saúde.
Apesar das dificuldades, estamos numa situação
incomparável a de 30 anos atrás. Devemos defender o SUS e nos orgulhar da
existência dele.
Drauzio
Varella
Médico
cancerologista e autor de "Estação Carandiru"
18.ago.2019 às 2h00