A cachaça e a senzala
Tudo começou entre 1532 e 1548 na Capitania de São Vicente, quando foi descoberto, por acaso, o "vinho" da cana-de-açúcar batizado pelos portugueses de garapa azeda da cana.
18/09/2020
Historiador Sebastião Deister
Edição 310
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Tudo começou entre 1532 e 1548 na Capitania de São Vicente,
quando foi descoberto, por acaso, o "vinho" da cana-de-açúcar batizado
pelos portugueses de garapa azeda da cana.
Seu nome
pode ter sido originado do vocábulo cachaza, muito comum na velha língua ibérica significando vinho de borra, isto é, um vinho de qualidade
inferior consumido em larga escala nas vilas e povoados mais interioranos de Portugal e Espanha. Por outro lado, há uma teoria
que garante ser a palavra oriunda do termo cachaço, ou seja, o porco no linguajar lusitano, daí derivando a palavra
feminina cachaça, a
porca. Tais denominações foram agregadas ao fato de a carne dos porcos
selvagens encontrados nas matas brasileiras - conhecidos como caititus ou
catetos - ser muito dura, razão pela qual os silvícolas e os colonizadores
valiam-se da bebida para amolecê-la, tornando-a, assim, mais palatável.
A
primeira plantação de cana-de-açúcar de que se tem notícia no Brasil foi
introduzida em 1504 por Fernão de
Loronha (nascido cerca de 1470 em Lisboa e ali falecido cerca de 1540), judeu
português convertido ao catolicismo (conhecido como cristão-novo) que se tornou
um dos primeiros grandes exploradores de pau-brasil nas recém-descobertas
terras brasileiras e, que posteriormente, administrou a grande ilha que hoje
leva, por corruptela, o nome de Fernando de Noronha. De outro modo, há referências históricas de que o
primeiro engenho de açúcar foi construído em 1516 na Feitoria
de Itamaracá, criada pelo rei Dom Manuel I de Portugal no litoral do atual estado de Pernambuco, e
confirmada por Alvará Régio ao administrador colonial Pero Capico, chamado
Primeiro Governador das Partes do Brasil. Na década de 1530, os primeiros donatários portugueses iniciaram empreendimentos nas terras da América Portuguesa, especialmente nas capitanias de Pernambuco e São Vicente, implementando vários engenhos de açúcar. Assim,
começaram a surgir no nordeste português os primeiros núcleos de povoamento e
agricultura organizada. Apesar de não haver um registro preciso sobre o
verdadeiro local onde a primeira destilação da cachaça tenha sido iniciada,
pode-se afirmar que, no território brasileiro, ela se deu em algum engenho do
litoral entre os anos de 1516 e 1532, constituindo, portanto, o que hoje
podemos chamar de primeira bebida destilada da América Latina.
Importante
registrar que a produção de cachaça em maior escala começou com a vinda para
Pernambuco da primeira caldeira destinada à preparação do melado de cana,
trazida em 1637 pelo naturalista alemão George Marc-Grave, que fazia parte da
comitiva de Maurício de Nassau, então governador das possessões holandesas no
Brasil e responsável pela modernização das técnicas do cultivo de
cana-de-açúcar na região nordeste.
Na extensa
produção colonial de
açúcar, cachaça era o nome dado à grande quantidade de bolhas esbranquiçadas
que se elevavam à superfície do caldo de cana quando este era posto a ferver. Tal
espuma era, normalmente, fornecida aos animais ou mesmo descartada quando de
seu excesso de produção. Com o tempo, houve a destilação e consequente
fermentação tanto da espuma quanto do melaço de cana, surgindo da mistura uma
aguardente de baixa qualidade que logo ganhou o nome generalizado de cachaça adquirida
por pessoas de baixa renda, ou então fornecida a escravos para deixá-los, mais
"alegres e dóceis". Entretanto,
a bebida logo deixou de ser exclusividade da senzala. Pelo fato de proporcionar
euforia, passou a ser também consumida pelos senhores das casas-grandes e dos
engenhos, ganhando posteriormente todas as regiões do país e se tornando,
assim, um produto tipicamente brasileiro.
É inegável
que, embora viciante e causadora de vários males orgânicos e mesmo sociais, a
cachaça é um produto de grande importância cultural, social e econômica para o
Brasil. Historicamente, a bebida está diretamente relacionada ao início da
colonização portuguesa e à intensa atividade agrícola em
várias partes do país, uma vez, por ser oriunda da mesma matéria-prima que
fornece o açúcar - no caso, a cana - trouxe dividendos muitos grandes ao Brasil
quando do estabelecimento de centenas de engenhos, destilarias e fazendas, em
especial pela região nordeste do Brasil.
Durante o processo de produção da cachaça, são gerados os seguintes resíduos: Ponteira da cana, vinhoto e bagaço. A ponteira da cana-de-açúcar pode ser utilizada em silagem para
alimentação animal. Já o bagaço, embora rico em fibras, mostra-se pouco
nutritivo caso a moagem não tenha sido eficiente, sendo assim mais útil se for
utilizado a seco. Todavia, além de sua utilização como combustível para
caldeiras e geração de energia elétrica, o bagaço de cana vem sendo
utilizado na alimentação de bovinos, na remoção de poluentes da água, na substituição da areia
na construção civil, na confecção de luminárias
decorativas, na produção de fertilizantes, como substrato em vasos no cultivo de mudas de orquídeas, como aditivo do asfalto e na confecção de nanotubos de carbono.
Por sua vez, o vinhoto, vinhaça, tiborna
ou restilo é comumente utilizado como fertilizante e também na produção de
biogás em algumas destilarias. Entretanto, este subproduto não deve, de forma
alguma, ser jogado em rios ou leitos de água sem tratamento prévio por ser
altamente poluente. A cachaça pode ser redestilada para produção de etanol, mas
não é aconselhável o retorno deste produto ao destilador para ser reprocessado.
Ele também configura uma boa alternativa como elemento na compostagem de
resíduos agroindustriais, no preparo de cuba de fermentação alcoólica, como aditivo na
dieta da alimentação de aves, como substrato para produção de biomassa proteica
e lipídica pela ação de leveduras e bactérias, para tratar poluentes da
indústria têxtil, na produção de biogás (metano) e na produção de biodiesel.
Especula-se que o termo "pinga" (tão
usado como sinônimo de cachaça) tenha nascido pelo fato de o vapor oriundo da
fervura do caldo de cana se elevar até o teto dos alambiques, ali se
condensando e depois "pingando' para o solo, mas não há comprovação histórica
ou documental a esse respeito. Por outro lado, deve-se
lembrar que a cachaça é uma bebida feita a partir da
fermentação da cana-de-açúcar, enquanto aguardente é a
nomenclatura dada para bebidas feitas a partir da fermentação de vegetais em
geral. Ou seja, toda cachaça é aguardente (aguardente de cana), mas nem toda
aguardente é uma cachaça.