Os trens - Saudosa alma da terra miguelense

Capítulo 20 - A Trajetória Histórica do Município de Miguel Pereira

 24/12/2021     Historiador Sebastião Deister      Edição 377
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As denominações das estações e paradas ferroviárias implantadas na Linha Auxiliar não foram escolhidas aleatoriamente. Algumas, no entanto, viram suas origens toponímicas perdidas no tempo, como é o caso de Arcádia: aquela estação, nos difíceis primórdios da ferrovia, chamava-se Bomfim, e o termo Arcádia só foi a ela aposto décadas depois da inauguração da ferrovia. Quanto a Vera Cruz, tal designação já existia naquele território desde a fundação da Fazenda da Piedade em 1770. Por sua vez, Francisco Fragoso permanece uma incógnita, já que não nos foi possível descobrir dados sobre o homem a quem a estação homenageava.

Logo após Bomfim, a estrada de ferro fazia um desvio para Oeste, até porque se mostrava necessária uma conexão com Vera Cruz e Francisco Fragoso (então batizada como Conrado Niemeyer), regiões importantes na época em função das fazendas ali existentes. Por tais razões, seguiu a ferrovia de Bomfim para uma primeira parada de reabastecimento de água na chamada parada de Engenheiro Adel e, logo após o atual Vale das Palmeiras, para um segundo posto de assistência intitulado Monte Líbano, referência à velha e histórica Fazenda Monte Líbano localizada no alto de Vera Cruz, propriedade explorada pelo barão de Paty na metade do século XIX. Dali, os trilhos corriam até Vera Cruz, cruzavam o Viaduto Dr. Paulo de Frontin e, infletindo para Noroeste, subiam a parte mais difícil da Serra para ultrapassar Fragoso, de onde, por curvas, aclives e pequenos desfiladeiros abertos nas rochas enfim atingiam os amplos pátios de Governador Portela.

Todo o progresso das regiões hoje cobertas pelo município miguelense deveu-se à chegada dos trilhos à Serra. Mesmo os pequeninos e humildes lugarejos assentados às margens da ferrovia, que não se desenvolveram tanto quanto Miguel Pereira e Portela, receberam uma inestimável cota de benefícios, e quase sessenta anos após as momentosas inaugurações das estações serranas, o elo geográfico, econômico, demográfico e social gerado pelos comboios liderados pela Maria Fumaça forneceu as bases políticas para a criação do nosso território municipal independente.

Vera Cruz, rigorosamente comprimida por montanhas invencíveis e rasgada pelo rio Santana, não oferecia condições topográficas adequadas a um empreendimento de tão grande porte e, assim sendo, permaneceu no tempo como uma povoação antiga, modesta e resignada, porém eivada de profundo e imensurável valor histórico para Miguel Pereira.

     Ao longo de aproximadamente cinco anos - o áureo período de construção da Linha Auxiliar compreendido entre 1893 e 1898 - a Serra do Tinguá viu-se conquistada por engenheiros atribulados e falantes e por escriturários afoitos e preocupados, por máquinas estridentes e vagões barulhentos, guindastes monumentais e locomotivas rangentes, pela fumaça acre e quase sufocante expelida pela Maria Fumaça, por dezenas de equipamentos de nome estranho e por outros artefatos desconhecidos e pesados quase diariamente despejados com estardalhaço pelas estações ainda em processo de conclusão. Palmo a palmo, sob um sol escaldante ou debaixo de chuvas impiedosas, a ferrovia galgava a Serra retalhando paredões desafiadores, arrebentando rochas seculares e cravando trilhos e dormentes pelas encostas insubmissas e pelo solo tenro e adormecido das colinas até então virginais. Em 1898, enfim, abriam-se as estações, acendiam-se os sinais, badalava-se o sino das plataformas e convocava-se o povo a participar das estrepitosas solenidades que tão nobre ocasião merecia. 

     Simultaneamente a esses animados eventos, abriram-se as janelas azuis das simpáticas casinhas brancas construídas ao lado dos trilhos vitoriosos para melhor se ouvir o apito melancólico, posto que triunfante, da resplandecente e resfolegante Maria Fumaça, que irrompia pelas curvas estreitas da Serra anunciando uma nova era de vida e prosperidade para a Serra. 

     Era o progresso que finalmente aportava em nossas montanhas, representado por levas de novos moradores curiosos e barulhentos, imigrantes decididos a vencer, ferroviários orgulhosos, vendedores de bugigangas, comerciantes visionários e matreiros, cabeças de gado gordo e mugidor, pecuaristas esperançosos, doutores engravatados e altivos, fazendeiros bem nutridos, maquinistas sorridentes e vaidosos, foguistas sujos de graxa e carvão, mocinhas espantadas levadas pela mão enluvada de suas cuidadosas mães, garotos inquietos e abelhudos a correr pelos vagões, madames circunspectas, rapazolas tímidos à procura de uma possível namorada e todo um séquito de profissionais encarregados de fazer a ferrovia funcionar e vencer os desafios: mestres-de-obras, pedreiros, carpinteiros, torneiros, serralheiros, metalúrgicos, telegrafistas, bombeiros, soldadores, vidraceiros, bilheteiros, agentes de tráfego, manobradores de linha, sinaleiros, funileiros, escriturários, almoxarifes, desenhistas, agrimensores, topógrafos, médicos, enfermeiros, engenheiros e muitos, muitos outros servidores ostensivamente orgulhosos e felizes.

     Desembarcavam pelas estações recendendo a tinta os mais modernos arados e outros equipamentos destinados a acelerar os processos de produção quase primitivos ainda utilizados nos sítios e chácaras da região. Pelos trens, transportavam-se pães, peixes, farinha, cimento, tijolos, jornais, lampiões, querosene, carvão, roupas prontas e tecidos em geral, linhas de costura e botões, sapatos, chapéus, luvas, remédios, sal, açúcar, bebidas, doces, móveis em geral, materiais de construção, madeiras, tintas, qualquer espécie de animal de criação doméstica - de bois a cabras, de galinhas a gansos e marrecos - e centenas de outros produtos até então não disponibilizados às populações da Serra.

Com a passagem regular dos trens, tornava-se viável trazer do Rio de Janeiro outros profissionais que falta faziam aos povoados serranos: especialistas em construção civil, médicos e professores, jardineiros e açougueiros, dentistas e protéticos, costureiras e bordadeiras, contabilistas e até mesmo padres, sacristãos e freiras que velassem pelas almas de alguns ímpios da Serra.

Em contrapartida, os agricultores e pecuaristas das colinas enfim podiam remeter para a capital e demais cidades fluminenses o excesso de sua produção: o queijo e o leite, a manteiga e o coalho, o milho e o feijão, a carne e o toucinho, o presunto e a salsicha, as verduras e os legumes, a mandioca e a cebola, o tomate e a beterraba, o pimentão e a batata, o alho e o pepino, a banana e a laranja, o quiabo e a ervilha, o caqui e a ameixa, as galinhas caipiras e seus ovos e até mesmo algumas flores produzidas pelas serranias miguelenses e patienses.

Apesar do demorado e tortuoso percurso dos trens, que por vezes despendiam até três horas em suas sofridas jornadas de ligação com Japeri - em cuja estação o viajante devia proceder a uma baldeação para as composições que se dirigiam para o Rio de Janeiro - tudo se mostrou possível para as vilas serranas e foi essa azáfama que permitiu à nossa terra direcionar seus primeiros e decisivos passos para o futuro, abandonando para sempre seus vestígios pós-coloniais.

 

Na próxima edição: Portela, Cidade Operária