Os Charreteiros de Miguel Pereira

Já Antônio "Can-Can", sem demérito de tantos outros trabalhadores ligados a essa atividade, com certeza se tornou o charreteiro mais conhecido e o cidadão que arrebanhou centenas de amigos na cidade

 29/09/2023     Historiador Sebastião Deister      Edição 469
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Desde os tempos pré-históricos, o homem usa vários animais para substituir a própria força. O primeiro recurso por ele empregado foi o transporte de carga, inicialmente nos lombo de mulas e cavalos, em seguida sobre vigas enfileiradas pelo chão que os bois e muares puxavam lentamente. Depois, entrou em cena a roda. Sua invenção permitiu aos indivíduos da remota antiguidade levar mais volume e peso de cada vez, de um lugar a outro, com velocidade muito maior e com mais segurança... e assim começou a era das carruagens.

Curiosamente, muitas civilizações antigas que atingiram notável desenvolvimento não conheceram a roda, como os Astecas e Maias, na América. Mesmo nos tempos modernos, alguns povos não usam a roda, entre eles, por exemplo, os esquimós do Ártico que se valem dos trenós tracionados por cães para sua locomoção. Mas este é um caso isolado. De fato, desde que foi inventada (pelo menos há 4.000 anos a.C.) a roda vem sendo usada constantemente pelos homens. Data, daquela época, o primeiro carro conhecido, um modelo em terracota descoberto em 1850 no local onde existiu a cidade persa de Susa. Na realidade, era um simples banco colocado sobre um eixo, com duas rodas e um varal à frente onde eram atrelados os animais. Entre os povos antigos de maiores posses dispor de um carruagem era símbolo de poder e riqueza. Por seu turno, os romanos utilizaram numerosos tipos de veículos. Existiam carros de corrida, leves, sobre duas rodas atrelados a dois, três ou quatro cavalos, chamando-se, conforme o caso, biga, triga ou quadriga.

Na idade média, tais carros foram desparecendo. As invasões germânicas destruíram muitas estradas e a desorganização social da época tirara a segurança dos caminhos. Apenas no século XIII os carros voltaram para as viagens dos nobres senhores feudais. Outra invenção importante foi a ferradura, recurso que possibilitou aos animais um andar mais firme, seguro e rápido.

Entre os tipos de carruagens históricas temos a berlinda (com quatro rodas e capota guarnecida de vidro); cabriolé (duas rodas, atrelado a um cavalo, capota móvel e conhecida como charrete ou aranha); caleça (quatro rodas, capota em sanfona; diligência (para transporte interurbano de passageiros, famosíssima no velho oeste americano); jardineira (duas rodas, coberta ou descoberta); landau (quatro rodas, capota móvel); tílburi (dois assentos, sem boleia para condutor, puxado por um animal apenas e rodas muito grandes) e vitória (quatro rodas, descoberta, boleia e capota móvel).

No século XIX apareceram os automóveis e as locomotivas. Tais meios de transporte tornaram as carruagens e charretes tracionadas a animais totalmente obsoletas. Todavia, até hoje elas resistem, em especial no interior do país onde são utilizadas como transporte turístico ou simples locomoção de prazer, além de servir a trabalhadores do campo.

Em Petrópolis, por exemplo, suas charretes configuram um exemplo típico de serviço turístico. Segundo o pesquisador local Joaquim Eloy, a chegada das charretes em Petrópolis remete-se ao período colonial e à própria criação da cidade. Na época, lá existiam tão-somente pequenos veículos com tração animal muito simples. Em sua primeira visita ao local, e disposto a fundar a cidade, D. Pedro II trouxe consigo suas diligências e carruagens pela antiga serra velha estabelecendo, assim, o uso de tal transporte na cidade imperial, tradição mantida até os dias atuais, apesar das polêmicas surgidas por conta do trabalho animal combatido pelos ambientalistas.

Em Miguel Pereira, três charreteiros, entre tantos outros, marcaram época com seu trabalho: Antônio Cadinha, Artur Cecílio e Antônio "Can-Can".

Alto e magro, sempre portando um chapéu de abas largas, Antônio (o "seu" Cadinha para todos em Miguel Pereira) desfilou por muito tempo em Miguel Pereira conduzindo sua charrete simples tracionada por um cavalo muito manso, de trote ritmado e constante. Ganhou a vida, juntou seu dinheirinho e esposou d. Maria, com quem gerou os filhos Alvinho e Léa (que lhe deram 6 netos), Eusébio e Eli, os dois sem descendentes. Todos seus filhos já falecerem, mas perpetuaram na cidade o sobrenome Cadinha.

Por seu turno, Artur Cecílio era um homem de bom porte físico, altura mediana, voz baixa e pausada que transmitia muita simpatia e cuja charrete, em finais de semana, circulava com desenvoltura por Miguel Pereira. Não tinha ponto fixo, mas aos sábados e domingos (além de eventuais feriados) lá estava ele, atento e acessível, nas proximidades da estação ferroviária para oferecer um passeio pelas ruas da cidade. Curiosamente, raramente usava as rédeas para conduzir seu cavalo (e o chicote, jamais!). O animal, acostumado a tantos passeios, sabia de cor o trajeto que devia seguir, trotando pela rua principal, passando pela antiga igrejinha e depois rodando por algumas ruas mais centrais. Morador da Vila Suíça, Artur Cecílio deixou em Miguel Pereira uma numerosa descendência.

 

Antônio "Can-Can"

 

Já Antônio "Can-Can", sem demérito de tantos outros trabalhadores ligados a essa atividade, com certeza se tornou o charreteiro mais conhecido e o cidadão que arrebanhou centenas de amigos na cidade. Além de se valer de uma verdadeira carruagem em estilo imperial, ele trabalhava para o Miguel Pereira Atlético Clube, exercendo a desagradável tarefa de recolher as mensalidades dos associados do clube, em especial os inadimplentes. Rigoroso, sério e persistente em suas funções, Can-Can percorria a cidade à busca dos devedores, mas pelo seu carisma não criou inimigos ou desafetos mais renitentes; praticamente toda a população da cidade simpatizava muito com ele. Por outro lado, adepto incondicional do futebol, mantinha uma relação profundamente amistosa e preferencial com o Estrela Futebol Clube.

Sua bela e confortável carruagem, em estilo cupê inglês, fez sucesso. Dotada de portinholas decoradas, era puxada por uma dupla de cavalos devidamente ajaezados, animais sempre limpos e higienizados. Sua primeira aparição aconteceu em 28 de outubro de 1967, junto ao Lago de Javary, ocasião em que o prefeito Nelzinho inaugurava uma série de melhorias no local. Foi um sucesso absoluto, conduzindo moradores e turistas em dezenas e dezenas de passeios pelas margens do lago. Can-Can deixou descendentes na cidade. Nos últimos anos de vida, lutando contra os males da idade avançada, internou-se no Hospital do SASE (em Paty do Alferes), onde faleceu. Atualmente, são ainda possíveis passeios de charretes no entorno do Lago de Javary.

 

Imagem: Antônio "Can-Can" e sua carruagem junto ao Lago de Javary (28.10.1967)

 

Na próxima edição: O Tiro de Guerra