A Guarda Nacional e o Tiro de Guerra em Miguel Pereira

Episódios Especiais do Passado de Miguel Pereira

 13/10/2023     Historiador Sebastião Deister      Edição 470
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Durante o período regencial, a ausência de um representante do poder real abriu caminho para uma série de revoltas e levantes que tentavam derrubar o governo. Diante das constantes ameaças, ainda sob a vigência da Regência Trina Permanente (1831 - 1835), o ministro da Justiça, Diogo Antônio Feijó, estipulou a criação da Guarda Nacional em agosto de 1831, com inspiração na "Garde Nationale" francesa objetivando atender aos interesses políticos da burguesia.

Na verdade, tratava-se de uma milícia civil formada, em sua essência, por homens livres destinados a manter a ordem interna. No caso do Brasil, a Guarda Nacional simbolizava a manutenção dos interesses políticos e econômicos dos mais ricos e respeitáveis membros da elite brasileira. Tanto isso é verdade que a maioria das funções de comando da instituição militar era ocupada por indivíduos provenientes dos abastados latifundiários do interior, em especial os influentes fazendeiros de café do estado do Rio de Janeiro e São Paulo. Na região Sul Fluminense, exerceram a chefia da Guarda Nacional Laureano Corrêa e Castro (barão de Campo Belo) em Vassouras, Francisco Peixoto de Lacerda Werneck (barão de Paty), em Paty e Vassouras, Peregrino José d'América Pinheiro (visconde de Ipiabas) em Valença, e o coronel Manoel Francisco Bernardes, em Paty do Alferes, entre outros.

A criação de uma milícia da Guarda Nacional era realizada de forma local e o alistamento para as suas fileiras era obrigatório a todo cidadão que tinha direito ao voto nos municípios. Com isso, o Exército Brasileiro, que tinha alistamento facultativo, ficou reduzido a um pequeno contingente de 10 mil soldados. De qualquer forma, os efetivos da Guarda Nacional, em um curto período de tempo, estavam presentes em quase todo o território brasileiro.

Com o passar do tempo, a função pública e mantenedora da ordem, que justificou a criação desse novo elemento d segurança, teve suas funções desvirtuadas. Ao longo de sua trajetória, as forças da Guarda Nacional foram sistematicamente ativadas para que os grandes proprietários de terra tivessem seus interesses assegurados. Com isso, as milícias se transformaram em instrumento de coerção política utilizado com fins particulares pelos seus "coronéis".

O caráter elitista e repressor da Guarda Nacional conseguiu sobreviver durante todo o Império e esteve presente no regime republicano até a década de 1930. Somente com a Revolução desse ano foi que o poder dos coronéis e de seus oficias armados foi desarticulado de forma definitiva. Com efeito, o golpe de 1930 pôs fim à chamada República Velha e, mais do que isso, foi o acontecimento que também deu fim às articulações políticas entre as oligarquias regionais do Brasil, que sobrepunham os seus interesses particulares aos interesses do Estado e da Nação como um todo. O principal protagonista da sedição foi Getúlio Dorneles Vargas, então presidente da Província do estado do Rio Grande do Sul. De qualquer maneira, nas décadas iniciais do século XX foram criados nos municípios os chamados Tiros de Guerra, uma espécie de polícia social muito atuante em Miguel Pereira, Vassouras e Paty do Alferes. Eles configuraram uma experiência bem sucedida entre o Exército Brasileiro e a sociedade civil, representados pelo poder público municipal e pelos milhares de cidadãos brasileiros que ingressavam nas fileiras do exército anualmente. Essa parceria, juridicamente celebrada por intermédio de convênios, esteve enraizada na história e na formação do povo brasileiro criando profundas ramificações na sociedade na qual se inseriu. Seus componentes, ao serem matriculados com base na Lei do Serviço Militar, recebiam a denominação de "atiradores", designação emblemática e histórica oriunda das primeiras sociedades de Tiro ao Alvo no Brasil, com finalidades militares e de formação da reserva para o Exército, embrionárias dos Tiros de Guerra.

Tais formações permitiam, de forma criativa, inteligente e econômica, proporcionar a milhares de jovens brasileiros, principalmente aqueles que residiam em cidades do interior do país, a oportunidade de atenderem à Lei e de prestarem o serviço militar inicial.  Mais que o caráter obrigatório, essa modalidade de serviço militar configurava um direito do cidadão em dar sua contribuição, ainda que modesta, para a defesa da Pátria, conciliando sua vida cotidiana com sua rotina de trabalho, estudo e convívio familiar.

Tal parceria, mais que vantajosa para os três entes (Exército, Poder Executivo Municipal e Cidadão), mostrou ser, ao longo de décadas, um instrumento de educação e de civilidade nos mais diversos quadrantes do território nacional, sendo que os Tiros de Guerra passaram a ser conhecidos pela sociedade brasileira como verdadeiras escolas de civismo e cidadania.

Por outro lado, as seções específicas de tais corporações, sempre subordinadas ao Comando da Região Militar, responsabilizavam-se pela formação de reservistas de segunda categoria, os já mencionados atiradores. A Região Militar tinha por obrigação escalar os instrutores gerais (normalmente sargentos e subtenentes), fardamento e equipamentos, ao passo que a administração municipal disponibilizava as instalações necessárias aos inscritos. Por essa razão, geralmente o prefeito exercia o cargo de diretor do tiro de guerra ao longo da existência de tal organização.

A etimologia da palavra vem do latim tiro, termo usado para descrever novato, jovem soldado e recruta. Ainda em 2010, existiam mais de 224 entidades com tal titulação distribuídas por quase todo o território brasileiro. Anualmente, ingressam aproximadamente 12.000 (doze mil) rapazes no Exército Brasileiro, alguns deles também chamados de atiradores em alusão aos antigos Tiros de Guerra. A estruturação militar, felizmente, hoje procura conciliar a instrução militar com o trabalho ou estudo, proporcionando a milhares de jovens brasileiros a oportunidade de prestarem o Serviço Militar Inicial. Já a formação do atirador é realizada no período de 40 semanas, com uma carga horária semanal de 12 horas, totalizando 480 horas de instrução. Há um acréscimo de 36 horas destinadas às instruções específicas do Curso de Formação de Cabos, e um terço desse tempo é direcionado para matérias relacionadas com ações de saúde, ação comunitária, defesa civil e meio ambiente. Miguel Pereira foi, durante anos, a sede de um dos mais conhecidos Tiros de Guerra do Sul Fluminense.

 

IMAGEM: Tiro de Guerra de Miguel Pereira na década de trinta

 

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