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Relato de uma pediatra do hospital Al-Aqsa, de Khan Yunis, em Gaza

"Ele tinha o braço e a perna direita arrancados por uma bomba. A fralda estava ensanguentada. Ele é um bebê de apenas 12 meses"

Edição: 490
Data da Publicação: 01/03/2024

De qualquer ângulo que se olhe, as crianças palestinas de Gaza formam um capítulo à parte da desumanidade em curso. Estatísticas de guerras anteriores mundo afora registravam média de 20% de crianças no cômputo total de vítimas. Em Gaza, elas são o dobro, 40%. Lá, as crianças WCNSF abrigadas em hospitais ou junto a agências internacionais, por vezes, sequer sabem declinar o nome. Emergem mudas de algum escombro, cobertas de pó e sangue. Não choram, não demonstram medo. Estão em choque, à deriva na devastação geral.

A pediatra americana Seema Jilani, assessora sênior do Comitê Internacional de Resgate, que atua globalmente em emergências de saúde, passou duas semanas no Hospital Al-Aqsa, de Khan Yunis. Em longa entrevista a Isaac Chotiner, da New Yorker, ela relatou como foram as primeiras horas de plantão ali. Chegara acompanhada de alguns cirurgiões, um obstetra, um anestesista e um intensivista vindos do Cairo. Ela já trabalhara em emergências no Afeganistão, no Iraque, no Libano, no Egito, na Turquia, na Líbia, no Paquistão e, há 19 anos, fazia pit stop na Cisjordânia e Gaza. Ainda assim, nada a preparara para o horror que vira em Gaza desta vez. A ausência de dignidade, ali, lhe parecera abissal.

"A primeira criança a cair sob meus cuidados foi um menino de 12 meses. Ele teve o braço e a perna direita arrancados por uma bomba. A fralda estava ensanguentada e se mantinha no lugar, apesar de não haver mais perna. Eu o tratei primeiro no chão, pois não havia macas disponíveis (...). Ao seu lado, havia um homem emitindo os últimos respiros. Estava ativamente morrendo havia 24 horas, com moscas por cima (...). O bebê de um ano sangrava profusamente no tórax... Não havia nem respirador, nem morfina, nem medidor de pressão em meio ao caos (...). Um cirurgião ortopédico envolveu com gaze os tocos da criança e comunicou que não o levaria de imediato ao centro cirúrgico porque havia casos mais urgentes.", contou com crueza a dra. Jilani.

Esses são trechos do artigo da colunista Dorrit Harazim, publicado no O Globo de domingo. Ela concluiu:

"O anunciado plano israelense de ataque à cidade de Rafah, visando derrotar os terroristas do Hamas, é uma insânia. Ali estão espremidos 1,5 milhão de palestinos já exauridos. Fugiram do chão onde habitavam mais ao norte para escapar dos bombardeios. Estão numa ratoeira enquanto o Egito ergue um muro de 7 metros de altura delimitando vasta área do Sinai. Talvez para recebê-los? Quem sabe o mundo acorda? Como constatou maravilhoso psicanalista Viktor Franki, judeu austríaco que sobreviveu Auschwitz, no fundo só existem duas raças - pessoas decentes e pessoas indecentes", concluiu a colunista.

Segundo o sociólogo e escritor Lejeune Mirhan, 130 crianças morrem por dia em Gaza. "Em nenhuma outra guerra, como da Ucrânia, Síria, Líbia etc. ocorreu esse massacre", disse o sociólogo.

Essa semana, agências das Organizações das Nações Unidas (ONU) afirmaram que a alarmante falta de alimentos, o aumento da desnutrição e a disseminação generalizada de doenças podem desencadear uma explosão nas mortes de crianças na Faixa de Gaza.

Segundo essas agências, alimentos e água potável tornaram-se "incrivelmente escassos" desde o aumento da agressão israelense contra os palestinos, em outubro de 2023. De acordo com uma avaliação conjunta feita pelos órgãos da ONU para crianças, pelo menos 90% das crianças menores de cinco anos em Gaza são afetadas por uma ou mais doenças infecciosas.

Fome e doença

"Fome e doença são uma combinação mortal", disse o diretor de emergências da Organização Mundial da Saúde, Mike Ryan, em um comunicado. Cerca de 70% das crianças de Gaza haviam tido diarreia nas duas semanas anteriores à avaliação citada acima, representando um aumento de 23 vezes em comparação com a linha de base de 2022.

"Crianças famintas, enfraquecidas e profundamente traumatizadas têm mais probabilidade de adoecer, e crianças que estão doentes, especialmente com diarreia, não conseguem absorver nutrientes adequadamente", ele alertou. "É perigoso, trágico e está acontecendo diante de nossos olhos".