Capítulo 17 - Novos tempos no Tinguá: a ferrovia e a serra

A Trajetória Histórica do Município de Miguel Pereira

 26/11/2021     Historiador Sebastião Deister      Edição 373
Compartilhe:       

Precisamos ter em mente que, ao longo de toda a época de ocupação da Serra do Tinguá, o atual território de Miguel Pereira - incluindo as terras que abrangem as localidades de Arcádia, Conrado, Mangueiras, Paes Leme, Francisco Fragoso, Vera Cruz, Marcos da Costa, Vale das Videiras, Alto do Catete, Cruz das Almas, Lagoa das Lontras, Javary, Cilândia e Governador Portela - pertenciam de fato e de direito à Freguesia de Vassouras, cuja jurisdição ainda cobria toda a área de Paty do Alferes. Tendo como ponto de partida essa informação fundamental, podemos ter uma ideia mais precisa a respeito da imensidão territorial que formava o município vassourense durante o século XIX e ao longo do primeiro quartel do século XX, uma vez que somente em 1955 Miguel Pereira veio a formar uma célula municipal independente, enquanto Paty somente iria emancipar-se bem mais tarde, ou seja, em 1987. 

Por conseguinte, ao relacionarmos em páginas anteriores os sítios e as fazendas que serviram de base para o nascimento das atuais terras miguelenses, estávamos, na verdade, estudando as circunstâncias que possibilitaram o desbravamento de nossas colinas e não fazendo referência direta à formação do nosso município na qualidade de território autônomo.

Claro está que as modestas fazendas edificadas em nossa área dependiam das atividades econômicas representadas pela cultura cafeeira implantada anos antes em Paty e também das decisões administrativas emanadas de Vassouras. Constituindo imensos latifúndios, as belas propriedades do século XIX estendiam-se para todos os quadrantes da região serrana, indo estabelecer limites com todas as demais fazendas encravadas pelas montanhas do Tinguá. Como exemplo prático do exposto, relembremos que a renomada Fazenda Monte Alegre vinha limitar-se com a Estiva na área hoje correspondente à estação ferroviária de Miguel Pereira, sendo que, para Leste, seus domínios alcançavam a Fazenda Manga Larga, já em Paty do Alferes. Por outro lado, a Fazenda Pantanal tocava trechos de terras próximos de Ferreiros, para Nordeste, enquanto suas linhas de administração para o Sul vinham confinar-se com as áreas de posse da própria Monte Alegre.

Quando escrevemos "fazendas", fazemos alusão precípua à área de terra e não diretamente às casas grandes onde viviam seus poderosos senhores. Por conseguinte, todo o atual território municipal de Miguel Pereira nada mais era do que uma espécie de colcha de retalhos, com uma dúzia ou mais de propriedades interligando-se entre si por imensos vazios de terras ou por eventuais e decadentes plantações de café, milho, mandioca, cana-de-açúcar, banana e algumas poucas árvores frutíferas.

Nos anos terminais do século XIX e nas primeiras décadas do século seguinte, os proprietários de tantos terrenos ociosos viram-se na desagradável obrigação de retalhar suas possessões não só buscando atender a repentina demanda das inúmeras famílias que desembarcavam na região como também para fazer face aos gastos oriundos da administração de imensos latifúndios que não mais geravam uma produção capaz de prover suas necessidades financeiras e sociais mais urgentes. Com o vertiginoso declínio da cultura cafeeira e com as novas regras impostas por uma súbita e concorrida atividade econômica, os antigos e temidos "patrões da terra" não mais dispunham de mão-de-obra barata ou dinheiro fácil para introduzir novos tipos de trabalho em milhares e milhares de metros quadrados de propriedades derramadas pelas colinas.

O próprio advento da Estrada de Ferro - base de toda a prosperidade da Serra do Tinguá - ironicamente impôs uma imediata necessidade de desmembramento de quase todas as fazendas que se interpunham em seu traçado, contribuindo de maneira involuntária, porém fulminante, para a derrocada daquele estilo de vida até ali intocável. A ferrovia, pouco a pouco, adquiria as áreas periféricas aos trilhos, nelas construindo estações de embarque, pequenas paradas de reabastecimento e casas de administração ou de funcionários, com isso fracionando de modo inexorável, as até então indivisíveis freguesias serranas.

Em vista desse invencível conjunto de motivos, os fazendeiros de pronto iniciaram um rápido processo de loteamento de suas vastas terras, e a partir daí os povoados e demais lugarejos engastados pelas vertentes do Tinguá conheceram uma febril atividade imobiliária: ao longo da linha férrea, despontaram pequenos sítios e várias casas pequeninas, porém confortáveis, cujos moradores viam chegar pelos trens outras famílias de operários, comerciantes, pecuaristas, agricultores e imigrantes que, atraídas por novas possibilidades de vida e encantadas com o clima exuberante e a beleza das montanhas, logo se assentaram pelos emergentes logradouros da Serra, erguendo suas humildes residências ou novidadeiras casas comerciais, assim proporcionando a vilas e arraiais, antes esquecidos, um acelerado surto de progresso.

Logo após as inaugurações de diversas estações em 1898, a Estrada de Ferro Melhoramentos do Brasil (posteriormente Estrada de Ferro D. Pedro II, Central do Brasil, Leopoldina Railway e hoje a desativada Rede Ferroviária Federal S/A) inundou a Serra com toda a sua notável carga de progresso, novidades e riquezas. Povoados antes desprezados pelos primeiros desbravadores das colinas e quase amortalhados pela inércia econômica, descobriram-se, num repente, invadidos por mecânicos sujos de graxa, torneiros, carpinteiros, pedreiros, vendedores de quinquilharias, mascates, maquinistas, imigrantes de fala arrastada e até mesmo por alguns políticos oportunistas já interessados em tirar proveito daquela azáfama para implantar pela Serra um novo núcleo de poder e prestígio.


Foto ABPF - locomotiva 327.

Na próxima edição: Paulo de Frontin e a Ferrovia