Vida e morte do nosso patrono maior Miguel da Silva Pereira - 150 anos de nascimento

1º Capítulo

 11/06/2021     Historiador Sebastião Deister      Edição 349
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Filho do Coronel Virgílio da Silva Pereira e de D. Porcina Magalhães Pereira, Miguel da Silva Pereira nasceu no dia 2 de julho de 1871 na Fazenda do Campinho, propriedade rural de seu pai encravada no município paulista de São José do Barreiro.

Até os 12 anos de idade, o garoto permaneceu na fazenda, sendo alfabetizado pela própria mãe. Esgotados os recursos caseiros de ensino, o Coronel Virgílio levou-o para o Rio de Janeiro, inscrevendo-o nos exames preparatórios do Colégio D. Pedro II.

As inquietações que afligiam seu pai ansioso e preocupado não apenas se revelaram desnecessárias como ainda foram substituídas pela euforia. Além de conseguir brilhantemente uma vaga naquele colégio tão desejado pela elite brasileira, Miguel Pereira logo manifestou sua invulgar inteligência, apresentando um aproveitamento ímpar em todas as disciplinas e nos múltiplos testes propostos pelos mestres ao longo dos anos iniciais de seu curso.

Valendo-se de um inato dom de comunicação e solidariedade, em poucos meses de internato o jovem estudante punha-se a ensinar aos colegas mais embaraçados tudo aquilo que assimilava com extrema facilidade, revelando bem cedo a qualidade de transmitir conhecimentos que faria dele, anos depois, um extraordinário e solidário professor universitário.

Sereno e responsável, mantinha-se fiel ao compromisso assumido com os pais e com os livros, tendo nos estudos o objetivo maior de todas as suas ambições existenciais. Não se afastava, porém, do convívio com os colegas e de contatos diários com seus mestres, personalidade que o levava a ser admirado pelos professores e respeitado pelos colegas.

Por outro lado, na alma e na mente daquele estudante compenetrado e afável continuava a arder a chama de seu fascínio pela paz dos campos e pelo verde convidativo das montanhas do interior. Por conseguinte, ao se encerrar o ano letivo, ele mergulhava feliz nas férias tão aguardadas, partindo para sua fazenda distante e querida, onde liberava sua identidade viva de adolescente rural e despreocupado.

Era um período de tranquilidade e quase alienação do mundo que o jovem cultuava ao lado da família, mas que terminava rapidamente, porém os compromissos na capital carioca logo exigiam seu retorno. De fato, com apenas 20 anos Miguel Pereira ingressava na histórica Faculdade de Medicina do Rio de Janeiro, após ter obtido distinção em todos os longos e exaustivos exames prestados e causar profunda e benéfica impressão nos austeros mestres que lhe haviam imposto sabatinas desgastantes por vários dias.

Em 1896, o jovem acadêmico apresentava uma tese revolucionária à Congregação da Faculdade de Medicina, condensada numa obra de excelência intitulada "Hematologia tropical", com a qual deixou eternizado seu nome nos anais da medicina brasileira. Com efeito, o trabalho jogava por terra a preconceituosa ideia de que o sangue do homem nascido nos trópicos seria inferior em qualidade ao sangue do homem europeu. O minucioso texto de Miguel Pereira já revelava o metódico espírito de pesquisador que ele aperfeiçoou ainda mais nos anos seguintes e, principalmente, suas preocupações em relação às doenças que tanto molestavam as populações mais humildes do interior brasileiro. Paralelamente, a obra derrubava alguns conceitos médicos tidos como imutáveis e, pela originalidade das proposições e pelo pioneirismo da ideia temática, o assunto provocou uma considerável polêmica entre outros respeitáveis médicos brasileiros. Por outro lado, a audaciosa tese, além de se mostrar vitoriosa após a rumorosa celeuma levada aos jornais, revelou-se também incontestável com o tempo. Todavia, embasado em pesquisas profundas e convicto de suas concepções científicas, Miguel Pereira permanecia indiferente às discussões que provocava, já que abominava desavenças entre as pessoas, em geral, e entre colegas de profissão, em particular. As críticas contundentes de eventuais antagonistas ou a aprovação tácita a seu trabalho por parte de seguidores mais fiéis de modo algum interferiam em seu jeito pacífico de ser, viver e trabalhar. Miguel Pereira, ao longo de toda sua breve vida, sempre demonstrou especial predileção por esse trabalho, não por ter sido o primeiro de muitos e provavelmente o mais famoso, mas sim por considerar que as ideias nele explicitadas eram irrefutáveis e que a verdade sobre uma hipótese médica tão discriminatória como aquela que ele combatia tinha de prevalecer na aplicação da medicina em tempos futuros.

No decurso dos anos seguintes, Miguel Pereira provou ter nascido para o exercício da medicina. Pesquisador incansável, gradativamente dava-se a conhecer como um profissional idôneo, participativo e acessível aos colegas que o consultavam com inusitada e respeitosa frequência a respeito dos mais variados assuntos da área científica. Não tinha ele completado ainda um ano de formado e já a Academia de Medicina aprovava sua eleição como membro titular - isto em 23 de dezembro de 1897 - sob aprovação unânime dos demais componentes da instituição e debaixo de aplausos calorosos e prolongados de todo o público presente ao evento. No dia 30 do mesmo mês, Miguel Pereira assumia a vaga com indisfarçável emoção, apresentando, para imensa satisfação de seus inúmeros alunos e dezenas de colegas, a edição final da sua Memória Médica sobre Anemia Tropical, com isso encerrando de vez as polêmicas sobre tal assunto.

 

Ilustração: Miguel Pereira como Catedrático da Faculdade de Medicina