Capítulo 16 - A Estrada de Ferro e a implantação da Estiva

A Trajetória Histórica do Município de Miguel Pereira

 19/11/2021     Historiador Sebastião Deister      Edição 372
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Para entendermos ainda mais as origens do município de Miguel Pereira, precisamos novamente ressaltar que as vilas nascidas ao longo do trecho da Linha Auxiliar encaixado entre Japeri e a Estiva apresentaram uma evolução bastante diferenciada daquela ocorrida em Paty do Alferes e Vassouras. Não tendo suas primevas raízes cravadas na época imperial brasileira, e mesmo independente das influências urbanísticas, sociais e arquitetônicas ditadas no século XIX pelos sofisticados e onipotentes barões do café, as localidades de Paes leme, Conrado, Arcádia, Francisco Fragoso, Governador Portela, Barão de Javary e Estiva surgiram de forma quase espontânea, sem maiores planejamentos e em função direta das determinações impostas pelas necessidades logísticas da ferrovia. Assim, de maneira involuntária, os povoados serranos desenvolvidos em princípio do século XX fugiram do estilo grandioso e quase perdulário inspirado nas velhas fazendas de café, contribuindo com tal comportamento para a criação de outro tipo de sociedade pelas montanhas do Tinguá.

Tendo em mira os novos tempos que vinham abraçar o século recém-chegado, as casas que brotavam pelas colinas eram erguidas na razão direta das posses mais modestas de seus proprietários, entre os quais se incluíam alguns lavradores eventuais, funcionários da rede ferroviária, descendentes de escravos, filhos de antigos fazendeiros e uma plêiade de comerciantes audazes e ansiosos. Tais construções eram acanhadas, porém práticas e funcionais, com uma estrutura que rejeitava para sempre o aspecto luxuoso das imensas e ricas mansões que tinham feito a glória de Vassouras e Paty do Alferes. A nova sociedade das montanhas precisava sobreviver tão-somente do trabalho imposto pela ferrovia e por outras atividades comerciais mais urgentes. A recém-nascida era social não mais permitia a tranquilidade oferecida pelas fortunas advindas da cultura cafeeira, até porque esta já se encontrava em seus estertores finais. O século entrante exigia ideias frescas e disposição redobrada para novos empreendimentos na Serra, e apenas pelo trabalho sério e organizado os povoados do Tinguá poderiam prosperar.

Como já sabemos, a ferrovia encontrava-se no cerne dessa mudança radical. Responsável direta pela construção de dezenas de residências, a ela jamais acudira o sonho de levantar mansões e palacetes para seus engenheiros e diretores. As casas deviam ser simples e confortáveis, com quatro ou cinco cômodos no máximo, abrindo-se exceção, vez por outra, para os engenheiros residentes que, pelo seu posto de comando e sua importância profissional, mereciam ser contemplados com propriedades mais amplas e à altura de sua posição social privilegiada, como, por exemplo, as duas belíssimas construções que ainda se conservam incólumes no centro de Miguel Pereira, bem junto à estação ferroviária da cidade, uma delas abrigando a Secretaria Municipal de Turismo e a outra transformada em moderno e elegante restaurante.

Simultaneamente às atividades imobiliárias da ferrovia, novas ruas e vielas abriam-se em Portela e na Estiva, enquanto velhas e barrentas estradinhas de ligação a bairros mais distantes eram alargadas para atender aos numerosos moradores da periferia. Afinal, tornava-se urgente rasgar outros acessos que ligassem o centro dos povoados aos loteamentos mais afastados, nos quais novos pioneiros construíam suas casas e de onde pecuaristas e lavradores já bem estabelecidos pudessem transportar até as estações de embarque os produtos dos seus sítios.

As duas primeiras décadas do século foram particularmente importantes em tal contexto de crescimento, quando então a maioria das casas foi erguida pelas vilas serranas e inúmeras vias de acesso foram abertas ao longo da Linha Auxiliar, destacando-se o alargamento da estrada de conexão entre Governador Portela e a Vila da Estiva. Cruzando também o logradouro de Barão de Javary, o velho e sofrido caminho dos tropeiros serranos ganhou ampliações e melhorias, correndo paralelo aos trilhos reluzentes e permitindo de imediato a ocupação dos terrenos laterais à ferrovia, até então desprezados em virtude de suas dificuldades de urbanização. Ultrapassando a Estiva, essa primitiva e fundamental estrada de barro e saibro ligou-se ao afamado "Caminho de Paty", integrando, definitivamente, aquelas duas vilas e fazendo surgir na serra uma via de ligação mais segura e relativamente confortável para as viagens a cavalo, em charretes ou até em carros de bois que já se faziam com expressiva frequência desde Portela até Avelar.

Para uma correta avaliação do quanto a estrada de ferro proporcionou de integração entre as comunidades dos distritos serranos, é significativo o fato de os trilhos acompanharem rigorosamente as principais estradas rodoviárias do município: de Paes Leme a Arcádia, e depois no alto da Serra - de Portela a Miguel Pereira - ferrovia e rodovia assistem-se de forma indissolúvel e tal característica permanece nos domínios de Paty do Alferes, pois os trilhos seguem de Arcozelo a Avelar e daí até Vila Rica sempre ao lado das antigas vias de terra que serviram de referencial e canteiro de obras para a implantação da estrada de ferro em nossas montanhas.

Finalmente unidos a Paraíba do Sul e Três Rios, a Vassouras e Barra do Piraí, a Japeri e ao Rio de Janeiro, tanto Portela quanto a Estiva puderam dedicar-se à sua vocação de crescimento. Nos dois povoados, inauguraram-se bares e restaurantes, instalaram-se sortidos empórios de mantimentos destinados a abastecer as dezenas de casas que obtinham da estrada de ferro a fonte maior de seus sustento, apareceram alfaiates e costureiras, dentistas e farmacêuticos, vendedores de gasolina, óleos e querosene, motoristas de "carros de praça", criaram-se bandas de música e clubes de futebol, buscou-se a luz elétrica e o telefone, multiplicaram-se as congregações religiosas, nasceram hotéis e pensões e assim, de forma lenta, mas obstinada, os decididos moradores das montanhas foram criando seus filhos, organizando suas vidas e retocando aqui e ali, sempre e mais, os seus queridos povoados.

Alguns agricultores, deslocados para os arredores das vilas, incrementavam o cultivo de seus produtos com sementes e mudas de melhor qualidade trazidas por um ou outro mascate que desembarcava dos trens, enquanto uma dezena de pecuaristas esperançosos tratava de criar seus animais para fornecer aos nascentes mercados a carne, o toucinho, o torresmo, as linguiças, o leite, o queijo, o requeijão e outras delícias que tanta falta faziam à população.  Por conseguinte, logo apareceram pelos povoados pequenos açougues e coloridas bancas de frutas e hortaliças, estas de pronto fazendo a festa das donas de casa nas ensolaradas manhãs de domingo, quando "a feira" alcançava seu apogeu após a missa das sete horas na igrejinha de Santo Antônio.

 

Na próxima edição: A Ferrovia e a Serra