Cemitério dos Escravos - Sítios Históricos do Sul Fluminense - 4
Um escravo jamais seria enterrado em ao lado dos nobres ou de seus senhores brancos. No cemitério existem cerca de 30 túmulos distribuídos quase simetricamente pelo terreno. Sobre cada uma das campas há uma cruz negra de ferro chapado.
21/10/2016
Historiador Sebastião Deister
Edição 108
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Uma das
lembranças mais ricas e interessantes legadas pelo cruel período escravocrata
que tantas vidas negras ceifou nas áreas de Vassouras e Paty do Alferes
permanece até os dias atuais resguardada por árvores centenárias em um bosque
tranquilo adstrito aos fundos da Fazenda do Secretário, nas proximidades de
Ferreiros Trata-se de um terreno retangular, com aproximadamente 300 metros
quadrados silenciosos e sombreados, em cujo solo descansam, agora em eterna e
merecida paz, os corpos dos negros que tanto fizeram pelo fausto daquela
propriedade.
Embora
isolado na mata, o cemitério dos escravos recebe periodicamente os cuidados de
alguns funcionários da fazenda, e, por certo, de servidores de sítios vizinhos,
providência que mantém a área em razoáveis condições de limpeza, mas que não
evita na alma do visitante um pesado ar de saudade e melancolia.
Em face
do número considerável de negros a trabalhar na fazenda do Secretário e mesmo
em outras propriedades do barão do Campo Belo (apenas como lembrança, entre os
anos de 1857 e 1865 Laureano Corrêa e Castro comandava 365 escravos em suas
terras) é mais do que razoável supor que haveria, em determinadas ocasiões, a
urgente necessidade de se eleger um local apropriado para a instalação de seu
cemitério. Afinal, um escravo jamais seria enterrado em Vassouras ao lado dos
nobres ou de seus senhores brancos, até porque a distância entre a cidade e a
fazenda não permitia um cortejo de tal natureza e a diferenciação social da
época nunca aceitaria um negro no solo consagrado pela Igreja Católica. Podemos
assim deduzir que o barão procurasse oferecer aos negros falecidos pelo menos
um local digno para seu repouso eterno, pois a julgar pelo seu caráter, tido
historicamente como humanitário e complacente, essa seria a atitude mais
sensata e louvável, bem preferível àquela de se permitir aos negros o costume
anticristão de sepultar seus mortos em um ponto qualquer de suas vastas terras,
mesmo porque isso certamente provocaria a desvalorização de algumas de suas
propriedades.
O
cemitério localiza-se em uma área quase inacessível, só podendo ser alcançado
através da própria Fazenda do Secretário - o que exigiria uma autorização
prévia de sua atual proprietária, coisa não fácil de se obter - ou por meio de
estradas vicinais pouco conhecidas e que cruzam bosques, capoeiras e valas num
percurso de quase duas horas muito cansativas. Por conseguinte, tal excursão
deve ser criteriosamente orientada por alguém que conheça muito bem os acessos
e as variantes daquelas colinas e matas, pois é grande o risco de se perder
pela área, principalmente em função da inexistência de estradas em meio à farta
vegetação, além do fato de se entrar em área particular sem o devido
conhecimento ou uma autorização prévia de seus legítimos donos.
O
cemitério encontra-se numa área plana circundada por arbustos baixos e
compactados, protegido em todo seu perímetro por cercas simples de arame.
Graças ao entorno formado pela arborização natural, os jazigos mantêm-se à
sombra durante todo o dia.
No
cemitério existem cerca de 30 túmulos distribuídos quase simetricamente pelo
terreno. Sobre cada uma das campas há uma cruz negra de ferro chapado
(curiosamente, em estilo Trindade, tipicamente cristão), por certo uma antiga
exigência dos antigos senhores brancos, todos eles católicos convictos. As
cruzes, com certeza, não eram solicitação dos parentes dos mortos, uma vez que,
em sua maioria, os negros mostravam-se fervorosos adeptos dos multitudinários
ritos africanos, e certamente não davam valor àquele símbolo tipicamente
cristão.
A
característica mais curiosa, bela e singular de tal campo santo refere-se às
ferramentas dos escravos deixadas junto às sepulturas. Sobre cada uma delas
repousa o instrumento de trabalho do negro falecido: um enxadão, um ancinho,
uma pá, um machado e por assim em diante.
Fica no
ar, entretanto, uma grande dúvida: Secretário, em sua fase áurea, chegou a
abrigar quase 400 escravos. Por que, então, um cemitério de dimensões tão
reduzidas, com apenas 30 túmulos? Teria sido ele construído nos últimos anos de
escravidão, ou cada uma das covas se destinava a receber vários corpos? Ou -
quem sabe? - existiriam outros locais como aquele ainda escondidos pelas matas
da região, guardando em si os mistérios e segredos daquela esplêndida fazenda?
Tais
hipóteses não são absurdas, pois sabemos que, de um modo geral, ao morrer um
escravo seus familiares ou companheiros de senzala levavam seu corpo para ser
inumado nas proximidades de um riacho ou então aos pés de uma colina mais
distante da sede da fazenda onde trabalhavam, razão pela qual até hoje é muito
difícil localizarmos os vestígios de alguns cemitérios de escravos em nossa
região.
Por
outro lado, será que, contrariando nossas pesquisas, tal cemitério não tenha
servido apenas aos colonos brancos da fazenda, jamais tendo atendido, como
imaginamos pelas suas peculiaridades e aparência inédita, aos negros que ali
trabalharam?
De
qualquer forma, sendo repouso de negros ou brancos, tal sítio, felizmente,
descansa num ponto praticamente inacessível a homens curiosos, despreparados e
insensíveis, fator que o mantém conservado e distanciado da especulação humana
e das prováveis consequências da falta de visão histórica e antropológica da
maioria de nossos concidadãos.
Na
próxima edição: Paraibuna e Monte Serrat