As Igrejas Católicas na Ocupação do Vale do Paraíba - Igreja de Vera Cruz = Nossa Senhora da Piedade

Manoel mandou vir de Portugal uma imagem em madeira policromada de sua santa predileta, com a qual pretendia adornar e consagrar o oratório de sua propriedade, conforme prescrevia o costume lusitano da época.

 26/05/2017     Historiador Sebastião Deister      Edição 139
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Vera Cruz, Centro - Informações na Matriz de Santo Antônio em Miguel Pereira

As origens da pequenina e despojada Igreja de Nossa Senhora da Piedade de Vera Cruz, erigida no logradouro miguelense do mesmo nome, remetem-se ao distante ano de 1770, quando o desbravador daquela região - Manoel de Azevedo Matos, ao lado da mulher Antônia Ribeira do Pilar Werneck e dos filhos Ana de Jesus Werneck, Inácio de Souza Werneck e Manoel de Azevedo Ramos - deu partida à construção de uma fazenda para a família junto ao rio Santana. Ato contínuo, Manoel mandou vir de Portugal uma imagem em madeira policromada de sua santa predileta, com a qual pretendia adornar e consagrar o oratório de sua propriedade, conforme prescrevia o costume lusitano da época. De fato, era um hábito arraigado entre todos os grandes donos de terras e fazendas que as casas-grandes dispusessem de uma capela própria em cujo interior a família cumprisse suas obrigações religiosas diárias e reverenciasse adequadamente os santos de devoção da família.

Manoel de Azevedo Matos era um português oriundo da Freguesia da Piedade da Ilha do Pico - daí a designação da fazenda - que chegara ao Brasil na primeira metade do século XVIII em razão dos insistentes convites de vários amigos seus que aqui já se encontravam à procura das riquezas do solo mineiro. Após viver algum tempo na Freguesia de Nossa Senhora da Borda do Campo, hoje Barbacena, decidiu ele mudar de ares e de atividades, vindo instalar-se com a família e empregados nas colinas adstritas às vertentes da Serra do Tinguá. Encantado com as belezas das colinas e com as potencialidades agrícolas de um solo tão virgem, Manoel, a princípio, construiu sua "primeira moradia" (1770) à margem direita do Santana, mas, com o aumento da família representado pelo nascimento de vários netos, mudou-se para um ponto mais acima das terras que administrava, porém à esquerda do leito do rio, ali dando início, em 1778, à edificação da "segunda moradia", na qual então determinou a feitura do oratório destinado a abrigar a imagem de sua madona protetora.

A propósito, em janeiro de 1814, junto àquele singelo altar, Inácio de Souza Werneck, o segundo filho de Manoel - após enviuvar e receber a Tonsura e as Ordens Menores, tornando-se com isso o Padre Werneck de Vera Cruz - rezaria a sua primeira missa na qualidade de Presbítero da Piedade, diante da belíssima imagem entronizada anos antes pelo pai, batizando, durante o culto, uma de suas bisnetas de nome Maria Innocência.

Daquele simples e doméstico oratório, a imagem de Nossa Senhora da Piedade acompanhou e abençoou várias gerações dos Werneck. Contudo, nos estertores do século XIX, em função da violenta crise provocada pela vertiginosa queda de produção de café em todo o Estado do Rio - cujas plantações eram a base da economia da Fazenda da Piedade - o Major Luís Werneck Teixeira de Castro, casado com D. Maria dos Anjos Albuquerque, seguiu os mesmos trâmites adotados por outros fazendeiros da região serrana e hipotecou a fazenda, herdada de seu pai Joaquim Teixeira de Castro, o Visconde de Arcozelo, genro do barão de Paty do Alferes.

Os compradores foram o Coronel Joaquim Ribeiro de Avelar e sua esposa, D. Mariana de Albuquerque, primos do Major Luís,na ocasião donos da Fazenda do Pau Grande, em Avelar. Com o fechamento desse negócio, o casal pretendia explorar adequadamente a Piedade e ao mesmo tempo impedir que a histórica propriedade fugisse das mãos da linhagem de seus originais fundadores.

Mesmo tendo sido postergada por mais dois anos, a hipoteca não pôde ser resgatada pelo Major. Por conseguinte, viu-se ele obrigado a repassar a Piedade a seus credores através de escrituras lavradas em 1903. Entretanto, ao entregá-la em definitivo a seus parentes, o Major fizera apenas uma exigência antes do recolhimento dos documentos hipotecários: na qualidade de último Werneck a administrar a fazenda, ele gostaria de levar a imagem de Nossa Senhora para a Matriz de Paty dos Alferes, cidade onde fora sepultado o corpo de seu tataravô Inácio, o homem que tanto impulsionara a prosperidade da fazenda e legara a Paty e aos vales do Santana e do Paraíba do Sul dezenas de ilustres descendentes, entre os quais vários barões e alguns viscondes. Assim, a santa original trazida de Portugal por iniciativa de Manoel de Azevedo Matos no século XVIII foi abrigar-se na capela lateral da Igreja Matriz de Nossa Senhora da Conceição de Paty do Alferes, sendo para lá transferida pelo próprio Major Luís em abril de 1903. Já no oratório da Fazenda da Piedade seria colocada uma réplica em massa da imagem, vindo esta a ser reverenciada na Igreja de Vera Cruz no dia 8 de dezembro de 1944, chegada em procissão diretamente do oratório da fazenda.

Na realidade, a data de consagração da Igreja de Vera Cruz fora escolhida com grande conveniência. Naquele dia levava-se a efeito em Paty um vasto programa de festividades especiais em comemoração ao centenário de sua Matriz. Dessa maneira, a família Lebre - na época proprietária da Fazenda da Piedade - conseguiu promover na localidade grandes celebrações litúrgicas, que culminaram com a entrega do pequeno templo à comunidade serrana por padres, diáconos, fiéis e autoridades especialmente convidadas para a entronização da Santa Padroeira de Vera Cruz.

Construída em alvenaria, a Igreja não dispõe de amplos espaços internos, tão típicos de outros templos da região, em especial aqueles erguidos durante o período de ocupação das freguesias serranas. De concepção simples, com uma torre lateral onde se aninha um modesto sino de bronze, possui apenas uma grande porta frontal dupla que dá acesso à nave de piso cimentado comum. O acervo de imagens é constituído por peças fabricadas em massa de gesso ou argamassa tradicional, destituídas de qualquer adorno mais rico ou faustoso. Por sua vez, o teto de rígido madeirame coberto de telhas não apresenta forro, e quando se penetra naquela igrejinha embalada pelas velhas lembranças da colonização de Vera Cruz tem-se a nítida impressão de se chegar a um histórico e convidativo salão de fazenda, cujo ambiente de franciscana pobreza transmite às almas a sensação de uma capela milenar.Talvez pela ausência de riquezas e refinamentos, a Igreja de Nossa Senhora da Piedade de Vera Cruz repasse tanta sensação de paz, como se o seu despojamento trouxesse para os dias atuais o clima de colonização que, há mais de duzentos e quarenta anos, por certo aqueceu e estimulou o espírito dos bravos pioneiros daquele recanto tão verde e sereno.

Na próxima edição: Igreja de Paty do Alferes