Jogo duro contra o preconceito

Fifa cria esquema especial para combater o racismo e a homofobia nos estádios da Copa

 16/06/2018     Planeta Colabora   
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Foto 1 - O craque francês Paul Pogba, ao centro, foi uma das vítimas de racismo no jogo contra a Rússia, em março deste ano. Foto: Elyxandro Cegarra (NurPhoto)

Vai ser um jogo duro. Daqueles que só se decidem mesmo no finalzinho. Mas a Fifa já sabe qual deverá ser seu maior adversário na Copa do Mundo da Rússia, entre os dias 14 de junho e 15 de julho: o preconceito sob diversas formas, em especial os de raça e de orientação sexual. E, para vencer este confronto decisivo, a federação internacional do esporte mais popular do planeta já traçou sua estratégia, principalmente levando em conta o fato de que o país-sede do Mundial é frequentemente acusado de protagonizar inúmeros atos ofensivos aos negros e aos gays. Mas, se nas partidas quem decide são os craques, nestes clássicos contra o preconceito, quem terá papel fundamental serão os árbitros.

O objetivo é o de tolerância zero ao preconceito na Copa. Para isso, a entidade máxima do futebol anunciou no começo do mês que os juízes terão poder até de interromper qualquer jogo, mesmo os mais importantes, se constatarem recorrentes ofensas por parte das torcidas. De acordo com o que a Fifa anunciou, em cada um dos 12 estádios do Mundial haverá nas tribunas três observadores. Auxiliados por câmeras, eles poderão constatar a ação de indivíduos ou grupos responsáveis por atos preconceituosos, solicitando a intervenção dos seguranças da arena. Tais observadores serão capazes de entender os idiomas dos torcedores envolvidos num jogo, bem como gestos e outras atitudes preconceituosas.

No gramado, os árbitros estarão instruídos a adotar o denominado ?sistema de três passos?. Primeiro, poderão interromper um jogo e pedir que seja feito pelo sistema de som do estádio um anúncio formal contra palavras e gestos preconceituosos. Caso os gestos, palavras ou cânticos preconceituosos persistam, caberá ao juiz suspender temporariamente a partida e solicitar nova mensagem oficial contra atos preconceituosos. Por fim, a terceira e mais importante atitude da equipe de arbitragem será a de encerrar o jogo com qualquer tempo, retirando-se do campo.

Foto 2 - Manifestante protesta contra o racismo nos campos de futebol ingleses. Foto: Rui Vieira/Anadolu Agency

Tais procedimentos foram elaborados a partir da colaboração da Football Against Racism in Europe (Futebol contra o Racismo na Europa) Network (Fare Network), entidade fundada na Áustria em 1999 e reconhecida pelo combate aos preconceitos no esporte e atuante em 50 países, inclusive no Brasil. A Fifa já vinha utilizando este sistema em partidas das Eliminatórias e na Copa das Confederações do ano passado, evento-teste para este Mundial. Entretanto, agora, com as 32 seleções e suas torcidas no palco do campeonato, são muito maiores as expectativas e receios de que ofensas raciais ou baseadas na orientação sexual venham mesmo a ocorrer.

?Disse para a minha família para não ir à Rússia, porque fico preocupado com a segurança deles, o que iria afetar minha preparação para as partidas?, Danny Rose - Jogador da Seleção Inglesa

Um exemplo disso ocorreu em São Petersburgo, na Rússia, em março, na vitória da França sobre o time da casa por 3 a 1, em amistoso. Sempre que atletas negros franceses, entre os quais o astro Paul Pogba, tocavam na bola, eram ouvidos gritos semelhantes aos de macacos. Embora fotógrafos e cinegrafistas tenham ouvido tais manifestações ao lado do campo, nenhuma providência imediata foi tomada. Na atual temporada, foi o terceiro caso de racismo naquele estádio, palco de uma futura semifinal da Copa. O Futebol Club Zenit, pelo qual já jogaram os brasileiros Hulk, Giuliano e Hernani, já recebeu duas sanções da Uefa (confederação europeia) por atos racistas de sua torcida em campeonatos dessa liga. No caso do amistoso, somente em maio a Fifa multou a Federação Russa em 22 mil euros por causa do ocorrido.

Embora a Fifa tenha estabelecido que o juiz poderá encerrar a partida caso haja repetidas manifestações de preconceito, o técnico da seleção inglesa, Gareth Southgate, entrou na contramão. Afirmou que, se algum atleta negro de sua equipe for ofendido, seus jogadores não deixarão o campo, porque a própria seleção poderia ser punida e todo o elenco se esforçou muito para estar na Copa.

Além das preocupações com possíveis ofensas racistas, a Fifa teme igualmente manifestações contra torcedores gays. Por um aspecto cultural, beijos e carícias entre pessoas do mesmo sexo não são nada bem vistos naquele país, que dispõe de uma rígida legislação antigay. Para que se tenha uma ideia, até uma cidadã do mundo, como Yelena Isinbayeva, bicampeã olímpica e tricampeã mundial do salto com vara, se manifestou a favor de medidas restritivas à comunidade LGBT em seu país, em 2013, no Mundial de Atletismo de Moscou.

?Nós nos consideramos pessoas normais, dentro do padrão. Vivemos com homens ao lado de mulheres e mulheres ao lado de homens. Tudo deve ser assim. É histórico. Nós nunca tivemos problemas assim na Rússia, e não queremos ter no futuro?, afirmou a atleta, que dias depois disse ter sido mal interpretada.

E o Brasil? O governo brasileiro divulgou no dia 7 de junho uma cartilha para os cerca de 60 mil torcedores verde-amarelos que irão ao megaevento, recomendando, em especial à comunidade LGBT, evitar manifestações de afeto em público. No país, a entidade dedicada ao combate ao racismo e a outros preconceitos no esporte é o Observatório da Discriminação Racial no Futebol, cujo site aborda também ocorrências relacionadas à homofobia, xenofobia e preconceito contra a mulher no esporte, entre outros. Em março, o Observatório revelou ter relacionado 17 casos de racismo nos estádios em competições da Confederação Sul-Americana de Futebol (Conmebol) desde 2014, sendo 11 na Libertadores da América. O mais recente havia sido em fevereiro, em Sucre, Bolívia, onde torcedores do Jorge Wilstermann local teriam chamado de ?macacos? atletas do Vasco da Gama. De acordo com a entidade brasileira, a Confederação Sul-Americana de Futebol (Conmebol) não tomou quaisquer providências. Até o momento, a CBF não se manifestou oficialmente sobre a questão, embora vários atletas da seleção sejam afrodescendentes, como Neymar, assim como torcedores e profissionais de imprensa brasileira, que deverão estar no Mundial. Isso sem falar em integrantes da comunidade LGBT brasileira.

A realidade é que os preconceitos invadiram os estádios, ou talvez jamais os tenham abandonado.   Em recente debate na Casa do Saber, no Rio, sobre o tema Futebol e Homofobia, o sociólogo Maurício Murad afirmava que os preconceitos neste e noutros esportes só serão combatidos à medida que a sociedade internacional for capaz de criticar, de se posicionar contra e de punir comportamentos baseados em preconceitos de raça, nacionalidade, etnia e orientação sexual.

 ?O futebol é muito mais que um jogo. É vida social, cultural, as mazelas, as alegrias. É uma ferramenta de educação e de civilização. Um esporte tão grandioso e de alcance mundial precisa ter essa missão civilizatória. Pode, deve e tem a obrigação histórica de fazer isso?.