"Exu nas escolas": Ciep mostra como cumprir lei do ensino afro-brasileiro
Legislação completa 15 anos, mas ainda não é plenamente praticada em muitos colégios
27/07/2018
Planeta Colabora
Edição 200
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Foto 1 - Alunos do Ciep 175,
em São João de Meriti (Foto: Divulgação com arte de Everton Vieira)
"Exu nas escolas", exige Elza Soares, em uma
das canções de seu álbum mais recente, numa alusão à falta de diversidade no
ensino brasileiro. O protesto da cantora tem causa; um dos desafios de uma
educação inclusiva é reconhecer que muitas salas de aula no Brasil precisam se
comprometer com o ensino antirracista e a não resumir a história dos negros à
escravidão. Em 2018, a Lei 10.639, que inclui a história e a cultura
afro-brasileira no âmbito de todo currículo escolar, completou 15 anos. Durante
esse período, alguns colégios buscaram reformular o currículo para incluir os
temas, mas a verdade é que a lei ainda não é plenamente cumprida.
O Ciep 175 José Lins do Rego é
um ponto fora da curva. Localizado em São João de Meriti, na Baixada
Fluminense, a escola é referência em práticas pedagógicas que atendem a Lei
10.639. Além de trabalhar a literatura africana em sala, a escola desenvolve
atividades como escola de samba, concurso de beleza negra, teatro, aulas de
música, oficinas de cinema e até seu próprio TEDx Talks - o CIEPx, com personagens locais.
"Não
existe essa história do professor não estar preparado, mas sim de não estar a
fim. A questão é entender a importância do tema e buscar informações. O papel
da escola é suscitar a discussão, e não necessariamente chegar com o pacote
pronto" Nelson Silva - Diretor do Ciep 175
O diretor Nelson Silva mantém
o colégio como um espaço voltado para a comunidade ao redor, mas que também dá
visibilidade ao conhecimento produzido por outros povos. "Não existe essa
história do professor não estar preparado, mas sim de não estar a fim. A
questão é entender a importância do tema e buscar informações. O papel da
escola é suscitar a discussão, e não necessariamente chegar com o pacote
pronto", diz Silva.
Foto 2 - Concurso de beleza do
Ciep 175 (Foto: Divulgação com arte de Everton Vieira)
Não
houve treinamento
Os avanços e retrocessos da
Lei 10.639 começam em 2003, quando as Diretrizes e Bases da Educação Nacional
(Lei 9.394/96) foram modificadas para incluir no currículo oficial o estudo da
história da África e dos africanos; a luta dos negros no Brasil; a cultura
negra brasileira e o negro na formação da sociedade nacional, resgatando a
contribuição do povo negro nas áreas social, econômica e política pertinentes à
história do Brasil.
Professora de língua
portuguesa e literatura do Ciep, Luci Dias, explica como foi sua adaptação para
atender a norma:
"Eu percebo que, quando
começamos esse trabalho, aconteceu uma mudança no pensamento do aluno. Nos
Cieps, a concentração de negros é grande e, por ser na Baixada, esse número é
ainda maior aqui. Quando a lei surgiu, não tivemos uma orientação pedagógica de
como deveria se trabalhar. Uma parte do livro didático fala sobre literatura
africana, mas o nosso trabalho acontece no dia a dia. A gente faz isso com
muita naturalidade porque a escola incorporou essa proposta", conta a professora.
Mas a lei não teve o mesmo
impacto em todas as salas de aula. O Coordenador de ensino da rede de colégios
particulares Notre Dame, Marcelo Ferreira, reconhece que existe uma falha no
ensino de história e cultura afro-brasileira em grande parte das escolas. Para
ele, a Lei 10.639 é só mais uma norma que não é cumprida por muitas
instituições de ensino. Um exemplo: a lei também inclui no calendário escolar o "Dia Nacional da Consciência Negra", 20 de novembro. Há alguma mobilização na
data?
"Você
pode andar pela escola que vai ver muitos cabelos afros. No concurso de beleza
negra, conseguimos discutir estética, mais do que apenas tirar foto. Aqui damos
a arma do conhecimento, porque queremos que nossos alunos saiam de uma
estatística e entrem na outra" Valéria Monã
"Não temos nenhum evento
específico para o Dia da Consciência Negra. A data serve para lembrar que não
estamos fazendo alguma coisa. Nós tratamos muito pouco desse tema porque o foco
é a prova do Enem, que aborda pouco as questões políticas, econômicas e
culturais da África. A gente gira em torno de uma história eurocêntrica e vemos
que (a Lei 10.639) é só mais uma lei teórica como tantas outras que existem no
Brasil", constata o coordenador.
Foto 3 - Priscila Barbosa
convidada do CIEPx 2017 e é idealizadora do projeto ?Autoestima Diva?, voltado
para resgatar a autoestima de mulheres emocionalmente abaladas (Foto: WSTA
Produções/Acervo CIEP 175)
Um exemplo disso foi o concurso de beleza
negra, uma das ações de destaque no Ciep 175. Segundo o professor de artes
Aldair Ventura, a atividade foi pensada para debater o conceito de belo na
sociedade brasileira:
"O concurso de beleza negra
foi uma das atividades que pensamos para estimular a autoafirmação do aluno. A
beleza é só o mote para trabalhar a conscientização. Precisamos desmistificar
que a beleza é grega.", explica Ventura.
Foto 4 - Aula da Valéria Monã,
animadora cultural do CIEP 175 desde sua fundação. Ela é mestre em dança afro,
atriz e coreógrafa (Foto: Samuel Souza ? Acervo CIEP 175)
O resgate histórico e cultural
tem impacto positivo nos dois mil alunos. A animadora cultural Valéria Monã
destaca a importância de mudar a imagem que o aluno tem de si mesmo para que
ele consiga transformar o mundo à sua volta.
O Ciep 175 mostra que é
possível quebrar os tabus cantados em "Exu nas escolas", por Elza Soares. "Exu
te ama e ele também está com fome, porque as merendas foram desviadas
novamente. Num país laico, temos a imagem de César na cédula e um "Deus seja
louvado?".