Vida e morte do professor e Dr. Miguel da Silva Pereira - Parte 4
Imagem: Dr. Miguel Pereira em seu sítio na Estiva (1916)
04/01/2019
Historiador Sebastião Deister
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Miguel Pereira jamais negou sua
ardente paixão pelo país e nunca se mostrou indiferente aos acontecimentos
políticos que afligiam vez por outra a população e seus governantes. Prova
disso é que, em 1893, ainda estudante, revelou-se um intransigente defensor de
Floriano Peixoto, e na revolta daquele ano militou bravamente nos trabalhos
prestados pela ambulância na linha de frente na Ponta de Armação, em Niterói.
No ano seguinte, partiu para os vales dos rios Paraíba do Sul e Itabapoana para
prestar socorro à população então castigada pelo cólera, dando toda sua
assistência aos pobres moradores da zona rural atingida pela moléstia, naqueles
tempos um flagelo mortal para os humildes e desassistidos moradores das áreas
ribeirinhas brasileiras.
Em outubro de 1916, ao saudar o
professor Aloísio de Castro em solenidade na Academia de Medicina, Miguel
Pereira proferiu o mais célebre e veemente discurso de sua vida. Afinal, o que
vira e enfrentara no interior, junto aos miseráveis das regiões interioranas do
país, servira de mote final para sua indignação e até mesmo jogara dúvidas em
sua alma sobre a validade do trabalho médico no Brasil. Depois de apresentar um
quadro caótico e intolerável relativo à saúde do povo brasileiro, que
sobrevivia a duras penas no meio rural, lançou ele a frase que notabilizou de
vez seu nome no país:
"(...) que se armem legiões, que cerrem
fileiras em torno da Bandeira, mas melhor seria que se não esquecesse nesse
paroxismo de entusiasmo que, fora do Rio ou de São Paulo, capitais mais ou
menos saneadas (...) que Brasil é, ainda, um imenso hospital!"
A comoção causada por esta frase
contundente e lapidar atingiu todos os meios sociais e administrativos do país,
até porque fora lançada por um homem desassombrado e de imensurável envergadura
moral e ilibado senso profissional e ético, cuja posição nos meios acadêmicos
era inatacável e exemplar. O trauma inicial causado por aquela declaração
terrível ? que apenas confirmava a dura verdade que poucos tinham coragem de
revelar ou de falar em público ? cedeu lugar a uma reação demagógica por parte
de muitos parlamentares e até mesmo por alguns setores mais reacionários da
imprensa, porém Miguel Pereira enfrentou outra vez a tempestade que
desencadeara com a altivez, a coragem e a indiferença magistrais que já
demonstrara em ocasiões semelhantes, convicto, como nunca estivera, da retidão
e da certeza de suas palavras assustadoras, posto que irretorquíveis.
Não estava em jogo apenas sua
faceta de médico, mas principalmente a defesa de um objetivo patriótico e
social que já o incomodava algum tempo. Miguel Pereira e seus colegas mais
fiéis não desejavam láureas ou reconhecimento oficial pelos seus trabalhos, mas
sim levar à população carente do interior um lenitivo capaz de, pelo menos,
atenuar um pouco os sofrimentos de seus corpos castigados por tantos males
perfeitamente controláveis e tratáveis.
A verdadeira guerra deflagrada
pelas candentes palavras daquele médico destemido e respeitado recebeu o
incondicional apoio de toda a Academia Nacional de Medicina. Esta, em comissão,
dirigiu-se de pronto à sede do Governo Federal para exigir com veemência as
medidas necessárias à melhoria de condições de saúde do sofrido povo do
interior.
Surgiram então, graças a tal
movimento, as raízes da profilaxia rural, tão ardorosamente defendida e
aguardada pelos médicos de todo o país. No dia 1º de maio de 1918, tal ramo de
trabalho foi regulamentado por uma Lei logo sancionada pelo presidente
Wenceslau Braz. Para que se tenha uma ideia precisa da relevância desse ato
governamental para a medicina preventiva nas zonas rurais e do prestígio que
Miguel Pereira ostentava junto ao Poder Executivo Federal, basta dizer que, ao
assiná-la, o Presidente da República aproveitou a oportunidade e escreveu carta
elogiosa a Miguel Pereira, destacando, entre outras citações e elogios:
"Cabe a V. Excia. a primazia nesta campanha
que se vai empreender."
Em relação a tais acontecimentos,
o deputado pernambucano e médico higienista Dr. Gouveia de Barros dizia no
Parlamento, em sessão de 8 de dezembro de 1922 (quatro anos, portanto, após a morte
de Miguel Pereira) que
"(...) Foi preciso o grito angustioso de Miguel
Pereira que, como clínico, sentia a todo instante e como professor mostrava aos
seus discípulos, continuadamente, no leito dos hospitais, a verdadeira situação
de abandono em que se encontravam nossos patrícios da zona rural."