Uma escola para quem vive nas ruas

Uma das únicas três instituições desse tipo em todo o país, o colégio resiste a dificuldades e enfrenta ação na Justiça com a Prefeitura de Porto Alegre

 24/01/2020     Educação Pública      Edição 278
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Foto 1 - Cartazes da manifestação pela manutenção da Escola Porto Alegre. (Fotos de divulgação)

O sinal bate às 13h30, e encontro os alunos na porta da Escola Porto Alegre, na Rua Washington Luiz, centro da capital gaúcha. O molho de chaves é carregado por Irene, funcionária do colégio desde a fundação. O ritual de abertura dos portões acontece duas vezes por dia e é repleto de significados. São essas chaves que destrancam os sonhos e oportunidades de pessoas, muitas vezes, sequer notadas, são "invisibilizadas".

Há 25 anos, a EPA, como é conhecida, não só existe como resiste, olhando para estes que muitos fingem não ver. A escola foi criada para reinserir crianças e adolescentes em situação de rua no sistema educacional. Começou com ensino fundamental e hoje é mais conhecida pela Educação de Jovens e Adultos (EJA), símbolo de uma educação possível e integradora para todos.

A ameaça

Apesar de ser apenas uma das três escolas do país dedicada à população em situação de rua, a EPA, desde 2014, funciona por meio de uma decisão judicial contra o pedido de fechamento do espaço feito pela Prefeitura de Porto Alegre, por meio da Secretaria Municipal de Educação. À época, como forma de manifestação para não fecharem a escola, cerca de 300 pessoas foram até a Câmara dos Vereadores usando faixas na cabeça com os dizeres "morador também pode ser doutor", e os alunos entregaram aos deputados e aos juízes cartas onde escreveram sobre a importância da escola para eles. 

No fim de novembro deste ano, novamente, a comunidade escolar se reuniu em uma audiência judicial que corria em segunda instância. O Tribunal de Justiça do Rio Grande do Sul negou por unanimidade a apelação da Prefeitura, que pretendia fechar a escola. Em comunicado, a Secretaria de Educação de Porto Alegre alega que pretendia instalar uma escola de educação infantil no espaço já que há grande demanda não atendida nessa região central da cidade.

O propósito

É na sala da direção que me encontro com a vice-diretora Jacqueline Junker, que também faz às vezes papel de psicóloga, coordenadora pedagógica, segurança, conselheira, mãe e cidadã. Jacqueline também milita no Movimento Nacional para Pessoas em Situação de Rua, um ideal que, para ela, transborda o emprego na escola.

"Estar e trabalhar aqui dá outra noção e ideia de educação. Para a sociedade, é difícil; para o gestor, mais ainda; e para os professores também. No primeiro dia de muitos deles, eu digo logo que terão que trabalhar com a dor e com a morte", ela diz. Tomada por este ambiente desde 2002, Jaque, como é carinhosamente chamada, conta que o formato da EPA não era para vigorar em pleno ano de 2019.

"A EPA foi pensada para ser uma escola 'travessia', que inspiraria conselhos tutelares, que introduziriam o sistema na LDB (Lei de Diretrizes e Bases da Educação, que define e regulamenta o sistema educacional brasileiro, seja público ou privado) e em políticas sociais, chegando ao ponto de não precisar existir", explica a vice-diretora.

Mas parece que a realidade não deixou. As crianças que eram atendidas pelo colégio tornaram-se jovens, e de jovens viraram adultos. Como então conseguir criar métodos que possibilitassem a continuidade desses jovens no colégio? "Essa é uma escola que tenta de todas as formas possíveis estar presente e perto, assim como o pressuposto de Paulo Freire", completa a vice-diretora. "Não é fazer para, é fazendo com. São eles que reeditam o que é escola e o que pode ser uma aula", explica Jaque.

Foto 2 - Alunos e funcionários na manifestação contra o fechamento da instituição. (Foto de divulgação)

O desafio

Mas garantir que esses alunos permaneçam na escola não é simples. "Uma pessoa em situação de rua não consegue ficar um ano inteiro na escola. Se fosse obrigatório, nós provavelmente não conseguiríamos avançar nenhum estudante, apesar de terem conhecimento. Quando voltam e estão quase prontos, corremos para avançar e, assim, não perder o estudante".

A pauta de chamada das turmas é atualizada com informações não tão comuns em uma escola tradicional: total de alunos, transferências, morte, evasão e cancelamento de matrícula, além de conclusão, número real e quantidade dos gêneros.

Quem faz essa triagem é o projeto Serviço de Acolhimento, Integração e Acompanhamento, uma parceria com a Universidade Federal do Rio Grande do Sul e seus residentes em Psicologia. É lá, em uma das salas, que os estudantes universitários organizam rodas de conversa entre mulheres e grupos de convivência, além de fazerem a ponte com o sistema de assistência social, responsável pela emissão de certidões de nascimento, identidade e outros documentos. Cópias desses documentos ficam na EPA como segurança, já que muitos acabam perdendo os originais por conta das diversas "batidas" realizadas pelos caminhões de lixo e guarda municipal.

De acordo com dados da Fundação de Assistência Social e Cidadania (FASC) e da UFRGS, só em 2017 o número de pessoas em situação de rua em Porto Alegre passava dos 2,3 mil. Em 2019, estima-se que esse número tenha ultrapassado quatro mil pessoas.

Jaque atribui esse processo da Prefeitura à falta de leis para resguardar os direitos da população de rua. "Trabalhar com eles é ouvir todas as carências das políticas públicas, desde o nascimento. Todos os abusos, todos os dias. Parece que é enxugar gelo. É trabalhar com a enésima potência de todas as ausências".

Além da EPA em Porto Alegre, há mais duas escolas que atendem pessoas em situação de rua no Brasil. Em Brasília, a Escola Meninos e Meninas do Parque, situada no Parque da Cidade Dona Sarah Kubitschek, recebe 105 crianças, jovens, adultos e idosos.

A importância da EPA e dessas escolas é expressada por Irene, a pessoa que zela pelo colégio e abre os portões, tal como São Pedro. "Eu vim para cá e me tornei outras pessoas: pessoas que dormem na rua, no sol, na chuva. Quando abro esse portão, eu não vejo mau humor. Eles não têm raiva nem dos parentes que, muitas vezes, os colocam nessa situação. Eles são evoluídos, nós deveríamos ser como eles".