Americanos abusam da bebida para enfrentar a pandemia
Especialista alerta que consumo excessivo pode causar dramas agora - como aumento da violência doméstica - e impulsionar problemas de saúde no futuro
24/04/2020
Planeta Colabora
Edição 291
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Em meio à pandemia de COVID-19, ficou mais
fácil comprar bebidas alcoólicas do que papel higiênico ou ovos. Em todo os
Estados Unidos, os governadores consideram a venda de álcool um negócio
essencial e diminuem as restrições para permitir a entrega em domicílio e a
venda de coquetéis para levar, lançando uma boia de salvação econômica a um
grupo de pequenos negócios.
A venda de bebidas alcoólicas é realmente
essencial? Segundo o governo federal, pouco mais da metade dos americanos acima
de 18 anos (55,3%) consumiu bebidas alcoólicas nos últimos 30 dias; pouco mais
de um quarto bebia em binge - mais de quatro bebidas para mulheres ou cinco
para homens em duas horas - e 1 em cada 17 (5,8%) tinha um transtorno por uso
de álcool, variando de leve a grave. Para aqueles neste último grupo, que são
realmente dependentes dele, o álcool pode realmente ser essencial.
Houve aumento nas vendas de vinho em 27,6%, de bebidas destiladas em
26,4% e de cerveja em 14% em comparação com a mesma semana do ano anterior.
Mas a evidência até agora durante a pandemia é
de que as pessoas em geral estão comprando mais bebidas alcoólicas e em
quantidades maiores. Como alguém que passou 30 anos estudando a ligação entre a
política, o consumo de álcool e a saúde pública, sei que isso provavelmente
resultará em um aumento nos transtornos por uso de bebidas alcoólicas nos
próximos anos.
De acordo com números da Nielsen, empresa especializada
em pesquisa de mercado, na semana que terminou em 14 de março, pontos de venda
como lojas de bebidas e mercearias registraram aumento nas vendas de vinho em
27,6%, de bebidas destiladas em 26,4% e de cerveja em 14% em comparação com a
mesma semana do ano anterior. A venda de vinho em caixas de 3 litros - uma moda
americana - aumentou 53% e a de pacotes com 24 latas de cerveja aumentou 24%. A
venda on-line de bebidas alcoólicas na mesma semana também aumentou 42% em
relação ao ano anterior.
Parte desse aumento é, sem dúvida, para
estoque doméstico, especialmente porque em muitos locais os bares e
restaurantes estão fechados. Mas também sabemos, por experiências e estudos
anteriores, que períodos de estresse econômico e psicológico - como este da
pandemia de COVID-19 - têm dois efeitos no consumo de bebidas alcoólicas: as
pessoas têm menos dinheiro para gastar em álcool, o que reduz seus gastos; mas,
ao mesmo tempo, é provável que bebam mais para aliviar o estresse que estão
sentindo. Em resumo, elas estão comprando quantidades maiores de bebida
alcoólica mais barata.
Esse aumento no consumo de bebidas terá um
impacto de curto e longo prazo na saúde e na segurança. No curto prazo, o abuso
de álcool suprime vários aspectos da resposta do sistema imunológico do corpo,
com efeitos particulares na capacidade dos pulmões de combater infecções como a
COVID-19.
Violência
doméstica e abuso de crianças
O aumento das vendas em lojas de bebidas e
mercados e o incremento do consumo doméstico provavelmente também afetarão a
violência interpessoal. Adicionar álcool a uma situação possivelmente violenta
é como derramar gasolina no fogo aceso. É mais provável que a venda de bebida
alcoólica para levar esteja mais associada a crimes violentos do que beber em
um bar ou restaurante, pois o consumo de bebida ocorre sem a presença de
atendentes e outros clientes. Várias cidades estão relatando reduções nos
crimes contra a propriedade na sequência da pandemia, mas um aumento na
violência doméstica. Os casos de abuso infantil também podem estar em alta,
pois, embora ainda não haja dados nacionais disponíveis nos Estados Unidos, um
hospital de Fort Worth, cidade do estado do Texas com 900 mil habitantes, que
normalmente atende oito casos desse tipo em um mês, recebeu seis em apenas uma
semana.
Quanto aos efeitos no longo prazo, um estudo
do impacto do surto de SARS nos funcionários do hospital de Pequim em 2003
encontrou uma maior probabilidade, nos anos seguintes, de sintomas de abuso ou
dependência de bebidas alcoólicas associados à quarentena ou ao trabalho em
ambientes de alto risco, como enfermarias dedicadas ao tratamento de pacientes
com doença respiratória. Uma maior exposição ao ataque terrorista de 11 de
setembro de 2001 ao World Trade Center foi associada a mais bebedeiras após um
ano e maiores chances de dependência de álcool entre um e dois anos. Após o
furacão Katrina, o consumo de álcool aumentou; após o furacão Rita, o consumo
de álcool por adolescentes cresceu na Louisiana. O que isso sugere é que,
durante a crise do coronavírus, as pessoas estão adotando padrões de consumo
mais pesados que aparecerão no futuro com taxas mais altas de transtornos
relacionados ao abuso de bebidas alcoólicas.
As autoridades em todos os níveis precisam estar conscientes dos
prováveis efeitos negativos do aumento do consumo abusivo de bebidas alcoólicas
em épocas como esta e usar ferramentas políticas à sua disposição para mitigar
esses efeitos.
Como os governadores declaram essencial a
venda de álcool, as cidades ainda podem usar alavancas políticas para aplainar
essa curva de problemas do uso de álcool. Antes do surto de coronavírus, o
CityHealth, um projeto da Fundação Beaumont (entidade filantrópica de saúde
pública), classificava as 40 maiores cidades do país em relação à legislação
local própria sobre a venda de bebidas alcoólicas dentro de seus limites
territoriais.
Oito cidades podem regular a venda de bebidas
alcoólicas, incluindo a limitação de horas e dias de venda, o estabelecimento
de valores máximos de compra e a proibição de descontos nos preços - fatores
conhecidos por aumentar o consumo de álcool; se necessário, elas também podem
fechar instalações. Outras oito têm elementos de controle local sobre a venda
de álcool, mas não têm jurisdição sobre parte dos estabelecimentos novos ou
existentes. As 24 cidades restantes não têm qualquer controle local: porque são
impedidas pelas leis estaduais, que proíbem a ação local, ou porque não
assumiram expressamente essa autoridade em seus códigos de cidades. No entanto,
mesmo nessas cidades, as autoridades públicas e de saúde pública poderiam usar
poderes de emergência para limitar ou interromper a venda de álcool em suas
jurisdições.
A Força-Tarefa sobre Serviços Preventivos
Comunitários (CPSTF) - um painel independente de pesquisadores e especialistas
em saúde pública e prevenção de doenças de diversas áreas - descobriu que o
número de lojas que vendem bebidas alcoólicas em uma área e como elas servem e
vendem aos consumidores é importante para a saúde pública. A CPSTF, que reúne
integrantes de órgãos públicos e organizações da sociedade civil, concluiu que
limitar a densidade de pontos de venda e as horas e dias que eles podem vender
são medidas eficazes para reduzir os problemas provocados pelo consumo de
álcool.
Existem muitos relatos anedóticos de lojas
limitando quantos rolos de papel higiênico os consumidores podem comprar, mas
as pessoas estão saindo com carrinhos lotados de bebidas alcoólicas. As
autoridades em todos os níveis, de pequenas cidades às instâncias estaduais e
federal, precisam estar conscientes dos prováveis efeitos negativos do aumento
do consumo abusivo de bebidas alcoólicas em épocas como essa e usar ferramentas
políticas à sua disposição para mitigar esses efeitos. A bebida alcoólica pode
ser essencial para alguns, mas o excesso é perigoso para muitos, agora e no
futuro.
David H. Jernigan* é professor de Gestão,
Direito e Políticas de Saúde da Universidade de Boston (EUA)
Foto 1 - Loja de vinhos no Brooklyn, Nova York,
onde pontos de venda de bebidas alcoólicas - para entregar ou levar- foram
considerados essenciais: consumo em alta nos EUA durante a pandemia. (Foto:
Angela Weiss/AFP)
Foto 2 - Carregamento de bebidas para loja em
Washington, capital dos EUA: aumento de vendas de vinhos, destilados e cervejas.
(Foto: Nicholas Kamm/AFC)