O Cemitério dos Escravos em Vassouras

Embora isolado na mata, o cemitério dos escravos recebe periodicamente os cuidados de alguns caseiros e retireiros da fazenda...

 02/10/2020     Historiador Sebastião Deister      Edição 312
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Uma das lembranças mais interessantes e ricas em terras vassourenses - apesar de se remeter ao cruel período escravocrata que tantas vidas negras ceifou nas áreas de Vassouras e Paty do Alferes - permanece, até os dias atuais, resguardada por árvores frondosas e centenárias em um bosque tranquilo e insuspeito adstrito aos fundos da multitudinária e famosa Fazenda do Secretário nas proximidades do distrito de São Sebastião dos Ferreiros. Trata-se de um terreno plano e retangular, com cerca de 300 metros quadrados silenciosos e sombreados, em cujo solo descansam, agora em eterna e merecida paz, os corpos de homens e mulheres que tanto fizeram pelo fausto daquela propriedade.

Embora isolado na mata, o cemitério dos escravos recebe periodicamente os cuidados de alguns caseiros e retireiros da fazenda, e, por certo, de servidores de sítios vizinhos, providência que mantém a área em razoáveis condições de limpeza, mas que não evitam na alma do visitante um pesado ar de saudade e melancolia.

Em face do número considerável de escravizados a trabalhar na fazenda do Secretário e mesmo em outras propriedades do barão do Campo Belo (apenas como lembrança, Laureano Corrêa e Castro, entre os anos de 1857 e 1865, comandava 365 negros em suas terras, entre homens e mulheres, em um contingente avaliado em mais de 308 contos* de réis) é mais do que razoável supor que haveria, em determinadas ocasiões, a urgente necessidade de se eleger um local apropriado para a instalação de seu cemitério. Afinal, um africano jamais seria sepultado em Vassouras ao lado dos nobres ou de seus senhores brancos, até porque a distância entre a cidade e a fazenda não permitia um cortejo de tal natureza e a diferenciação social da época nunca aceitaria um homem preto e não batizado no solo consagrado pela Igreja Católica. Podemos assim deduzir que o barão procurasse oferecer a seus cativos falecidos pelo menos um local digno para seu repouso eterno, pois a julgar pelo seu caráter, tido historicamente como humanitário e complacente, essa seria a atitude mais sensata e louvável, preferível àquela de se permitir aos negros o costume anticristão de inumar seus mortos em um ponto qualquer de suas vastas terras, até porque isso certamente provocaria a desvalorização de algumas de suas propriedades.

O cemitério está localizado em uma área quase inacessível, só podendo ser alcançado através da própria Fazenda do Secretário - o que exigiria uma autorização prévia de sua atual proprietária, licença de visitação de difícil obtenção - ou por meio de estradas vicinais pouco conhecidas que cruzam bosques, capoeiras e valas num percurso de quase duas horas bem cansativas. Por conseguinte, tal excursão deve ser criteriosamente guiada por alguém que conheça muito bem os acessos e as variantes daquelas colinas e matas, pois o risco de ficar desorientado pela área é grande, principalmente em função da inexistência de estradas em meio à farta vegetação, além do fato de se entrar em área particular sem o devido conhecimento ou uma autorização legal da administração da fazenda.

O cemitério encontra-se numa área plana circundada por arbustos baixos e compactados, protegida em todo seu perímetro por cercas simples de arame. Graças ao entorno formado pela arborização natural, os túmulos mantêm-se à sombra durante todo o dia.

Ali existem cerca de 30 túmulos distribuídos quase simetricamente pelo terreno. Sobre cada uma das campas há uma cruz negra de ferro chapado, por certo uma antiga exigência dos antigos senhores brancos, todos eles católicos convictos. As cruzes, com certeza, não eram solicitação dos parentes dos mortos, uma vez que, em sua maioria, os negros mostravam-se fervorosos adeptos dos milenares ritos africanos, e por certo não viam naquele símbolo tipicamente cristão algo que representasse sua fé.

A característica mais curiosa, bela e singular de tal campo santo refere-se às ferramentas dos escravos deixadas junto às campas. Sobre cada uma delas repousa o instrumento de trabalho do escravo falecido: um enxadão, um ancinho, uma pá, um machado e por assim em diante.

Fica no ar, entretanto, uma grande dúvida: Secretário, em sua fase áurea, chegou a abrigar quase 400 escravizados. Por que, então, um cemitério de dimensões tão reduzidas, com apenas 30 túmulos? Teria sido ele construído nos últimos anos do período escravocrata, ou cada uma das covas se destinava a receber vários corpos? Ou - quem sabe? - existiriam outros locais como aquele ainda ocultos pelas matas da região, guardando em si os mistérios e segredos daquela esplêndida fazenda? Além disso, Laureano administrava outras propriedades, como Retiro, São Gonçalo, Mendobi, Santa Rita, São Pascoal e Iguacunho, todas com vasta escravatura. Por que, em tais locais, não surgiu um cemitério semelhante?

Tais hipóteses não são absurdas, pois sabemos que, de um modo geral, ao morrer um escravo seus familiares ou companheiros de senzala levavam seu corpo para ser enterrado nas proximidades de um riacho ou então aos pés de uma colina mais distante da sede da fazenda onde trabalhavam, razão pela qual até hoje é muito difícil localizarmos os vestígios de alguns cemitérios de escravos em nossa região.

Por outro lado, será que, contrariando as pesquisas históricas e antropológicas, tal cemitério não tenha servido apenas aos colonos brancos da fazenda, jamais tendo atendido, como imaginamos pelas suas peculiaridades e aparência inédita, aos negros que ali trabalharam? Com efeito, Secretário foi uma das mais ricas propriedades do barão de Campo Belo, que comandava em suas terras dezenas de colonos brancos. Como não há outro local semelhante e pelas características dos túmulos - todos sem identificação de nomes - a História registrou em Vassouras o lugar como sendo o campo mortuário dos negros da Secretário.

De qualquer forma, sendo repouso de negros ou brancos, tal sítio histórico, felizmente, descansa num ponto praticamente inacessível a homens curiosos, despreparados e insensíveis, fator que o mantém conservado e distanciado da especulação humana e das prováveis consequências da falta de visão de eventuais visitantes que veem nele um simples cemitério e não um nicho eivado de lembranças, história e cultura.

 

*Um conto de réis corresponde a 1,4 kg de ouro de vinte e dois quilates