Estrada União-Indústria - 12 horas viajando em diligência
"O livro não tem merecimento a não o de ser o primeiro guia do viajante, feito no país, guia ilustrado de desenhos copiados das fotografias (...) A idéia primeira é de 1861, em 1863 trabalhei nela, em 1864, 1865 e 1866 acabei as vistas"...
16/10/2020
Historiador Sebastião Deister
Edição 314
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Com visão privilegiada
de cachoeiras, colinas verdejantes e penhascos por vezes assustadores, o
viajante que resolvia percorrer em diligência os 144 quilômetros da Estrada
União-Indústria, conectando Petrópolis a Juiz de Fora, podia se maravilhar com
as mais belas paisagens de serras e planícies, sentado com outras sete pessoas
numa cômoda viatura importada da Inglaterra e puxada, em geral, por quatro
mulas de trote manso e tranquilo. O serviço de transporte, a partir da
inauguração da estrada em 23 de junho de 1861 por D. Pedro II, tornou-se
regular entre as duas cidades, embora seu custo (18 mil réis em terceira classe
e 30 mil réis na primeira) não estivesse ao alcance da maioria da população.
Para entender as vantagens
e os benefícios de uma viagem como esta, fosse turística ou a negócios, o
usuário tinha à sua disposição um interessante e esclarecedor guia impresso e
ilustrativo, a primeira obra do gênero inteiramente produzida no Brasil.
Tratava-se de "Doze Horas em Diligência:
Guia do Viajante de Petrópolis a Juiz de Fora", de autoria do fotógrafo
alemão Revert-Henry Klumb. Dois exemplares do histórico livrinho, de 85
páginas, estão conservados na Divisão de Obras Raras da Biblioteca Nacional. O
próprio autor afirmava no prefácio:
"O livro não tem
merecimento a não o de ser o primeiro guia do viajante, feito no país, guia
ilustrado de desenhos copiados das fotografias (...) A idéia primeira é de
1861, em 1863 trabalhei nela, em 1864, 1865 e 1866 acabei as vistas, em 1870
tratei da publicação com um editor e enfim em 1872 vejo-a realizada!".
Klumb, natural de
Berlim, chegara ao Brasil entre 1852 e 1853, trazendo a técnica fotográfica chamada
estereoscopia (visualização de um objeto a partir de 2 pontos de observação
próximos). Depois de trabalhar por algum tempo no Rio de Janeiro, mudou-se para
Petrópolis, onde conseguiu as funções de fotógrafo da Família Imperial. É desta
época o Guia do Viajante, escrito em português e francês e primeiro de outros
anunciados (mas que não seriam publicados). As 29 litografias que acompanham o
texto, produzidas a partir de imagens realizadas pelo próprio autor, documentam
algumas etapas da viagem, sendo ali realçadas as belezas naturais da região e também
os muitos sinais da intervenção humana na paisagem.
Historicamente, a
própria Estrada União-Indústria pode ser considerada um exemplo de pioneirismo
empresarial. Realizada pelo engenheiro Mariano Procópio Ferreira Laje, foi a
primeira rodovia brasileira construída entre 1856 e 1861 inteiramente "macadamizada",
isto é, revestida de massa de pedra britada, areia e saibro comprimidos por um
rolo compressor. Esse tipo de pavimento especial e inédito fora desenvolvido pelo
engenheiro escocês John Loudon McAdam, daí seu nome. Oferecendo seis
metros de largura bem segura, as diligências e as mazzepas (veículos mais
confortáveis normalmente usados por membros da realeza ou por figuras
importantes do Império Brasileiro) percorriam a estrada a uma incrível velocidade
de 15 a 20 km por hora, fazendo doze paradas em estações estratégicas erguidas
ao longo do percurso tanto para trocar as mulas quanto para permitir aos passageiros
alguns minutos para alongar as pernas, como relata Klumb em seu guia.
O pequeno livro, embora
simples em sua concepção e montagem, acompanha o viajante em todas as etapas da
viagem, orientando-o, inclusive, desde seu eventual desembarque dos navios que
atracavam no cais da Prainha (atual Praça da Mauá) no Rio de Janeiro, indicando
horários e preços para o trecho ferroviário de Porto Mauá até a Raiz da Serra,
ponto de baldeação para as carroças que subiam até Petrópolis. Klumb lembra ao
viajante que:
"(...) os bilhetes para
Petrópolis são entregues para viagens inteiras ou para as estações (...) estabeleceu-se
a 3ª classe para os escravos, porém as pessoas que quiserem tirar o calçado são
ali admitidas, o que frequentemente acontece com a maior parte dos
trabalhadores do campo".
Quanto à viagem de
diligência até Juiz de Fora, o autor é pródigo de informações curiosas, como a
presença de sentinelas e guardas de fronteira nas cabeceiras da ponte sobre o
rio Paraibuna, na divisa Rio-Minas, "mais
difícil de transpor que a muralha da China (...) Há horários proibidos (de 6 da tarde às 6 da manhã)". A não ser
resolver pular a barreira, como fez o autor, que ainda comenta: "Miseráveis vexames de um fisco atrasado!".
Na saída da ponte que
une a vila de Monte Serrat ao Registro de Paraibuna, entrando em terras mineiras,
Klumb sinaliza a presença de uma chapa de mármore branco, selada na rocha que
costeia a estrada, com as palavras de D. Pedro II em ocasião da inauguração:
"Uma empresa cujo fim é
a construção de uma estrada que ligue duas províncias tão importantes e que,
continuando talvez para o futuro até as margens do segundo rio do Brasil,
reunirá os interesses de seis províncias, de certo merece ser chamada
patriótica".
A parada em Entre Rios (hoje Três
Rios) ofereceu a Klumb espaço para um desabafo. Na pequena cidade estavam
chegando naquela época os trilhos da Estrada de Ferro Dom Pedro II (futura
Central do Brasil), que, saindo do Campo de Santana e atravessando o Vale do
Paraíba, levou o alemão a imaginar que, com o tempo, as ferrovias acabariam por
retirar das estradas de rodagem o transporte de mercadorias e pessoas,
oferecendo um caminho mais rápido para o Rio de Janeiro e demais cidades
brasileiras. Klumb lamentou esta competição e previu o inevitável declínio do
ainda incipiente sistema rodoviário brasileiro, mas o tempo e a história se
encarregaram de mostrar que suas previsões não estavam corretas. De fato, a
Estrada União-Indústria (implantada por sobre o célebre Caminho Novo aberto por
Garcia Rodrigues Paes no início do século XVIII, principalmente pelas terras
mineiras) ainda serve muito bem a diversas localidades nascidas ou
desenvolvidas às suas margens, tais como Levy Gasparian, Monte Serrat, Simão
Pereira, Matias Barbosa e Juiz de Fora, entre tantas outras.
Fonte: Instituto Histórico de Petrópolis
Na próxima edição: Como se tratava o estupro
em 1833