Sem demarcação, Reserva do Tinguá é "comida pelas beiradas" por invasões

A Mata Atlântica, responsável pelo conforto climático que caracteriza Miguel Pereira e os demais municípios da região

 16/10/2020     Meio Ambiente      Edição 314
Compartilhe:       

Jornalista Maurício Thuswohl

Com a frágil presença do governo federal, a Mata Atlântica, responsável pelo conforto climático que caracteriza Miguel Pereira e os demais municípios da região, está sendo comida pelas beiradas na mais importante área de conservação ambiental do Centro-Sul fluminense: a Reserva Biológica do Tinguá. Considerada a "caixa d'água" da Baixada Fluminense por garantir a delicada saúde ambiental do Rio Santana, maior afluente natural do Rio Guandu, Tinguá sofre justamente por estar tão próximo de municípios em constante expansão. Enquanto os casos de invasão, desmatamento e construção ilegal dentro da Reserva se multiplicam, o aguardado processo de demarcação jamais foi concluído, apesar de a Justiça ter determinado sua obrigatoriedade em 2018.

Prazo se esgota essa semana

Com o objetivo de acelerar a demarcação da Rebio Tinguá, o Ministério Público Federal notificou o Instituto Chico Mendes de Conservação da Biodiversidade (ICMBio), órgão responsável pela gestão da Reserva, exigindo o cumprimento da sentença judicial. O prazo de 30 dias estipulado pelo MPF para que o ICMBio apresente um cronograma para a demarcação e comprove o início do processo licitatório para a escolha da empresa que a realizará se esgota esta semana, mas até agora o Instituto não se manifestou, mesmo sob pena de multa pessoal diária de R$ 5 mil para seu presidente.

Indefesa a Rebio tem 150 invasões

Esta demora deixa a Rebio Tinguá indefesa frente à pressão demográfica que a cerca. O MPF identifica pelo menos 150 pontos de invasão da área da reserva para construções ilegais em localidades como Vila do Tinguá, Rio D'Ouro, Xerém, Santo Antônio, Jaceruba e Registro, entre outras. O mesmo acontece em Miguel Pereira: "Se você pensar que a Rebio tem um perímetro de 106 quilômetros, dá para imaginar que tem pressão para tudo quanto é lado, principalmente nesta área de expansão da região metropolitana do Rio de Janeiro onde a floresta do Tinguá está localizada", afirma o biólogo Leandro Travassos, ex-chefe da Rebio afastado pelo governo Bolsonaro.

Reintegração conforme Plano de Manejo

Para Travassos, fazer a reintegração de posse de algumas áreas que foram invadidas posteriormente à criação da Reserva é tarefa até mais urgente que a própria demarcação. Concluído há 14 anos, o Plano de Manejo do Tinguá especifica os limites da Unidade de Conservação e serve de base legal para as reintegrações: "Os fatores responsáveis por essa pressão sobre a floresta são a ocupação grande e desregulada, a urbanização do entorno. E também a falta do ICMBio fazendo ali uma fiscalização um pouco mais efetiva e intensiva, o que não faz por carência de recursos humanos", lamenta.

As ocupações ilegais têm um efeito de bola de neve, diz o ex-chefe da Rebio Tinguá: "A ocupação irregular acaba fomentando outras ocupações. Às vezes, onde tem uma casa, se abre um processo para fazer a reintegração de posse e quando você volta ali, dois ou três anos depois, já tem cinco casas". Além disso, lamenta Travassos, as invasões acabam fomentando outros ilícitos tradicionais na região, como a caça e a coleta de palmito: "Os pontos de invasão da Rebio acabam fornecendo abrigo para caçadores e palmiteiros. Este é um dano que não cessa porque o cara fica lá e está sempre abrindo clareira em uma área de regeneração, está sempre plantando, tem a questão do uso do fogo etc".

Marcos visíveis

O MPF deu ao ICMBio um segundo prazo, de 180 dias, para "a demarcação física da Reserva Biológica do Tinguá em níveis substancialmente mais rigorosos que os atuais, cercando fisicamente a Reserva nos locais mais indicados para tanto". O Instituto deve também "reavaliar a forma dos marcos a serem colocados, de modo a dificultar sua retirada e facilitar sua visualização" e em 210 dias deve apresentar "um relatório, com fotos, de todos os marcos, placas e cercas" utilizados para a demarcação.

"É óbvio que a Rebio não vai ser totalmente demarcada, não será uma cerca, um processo linear. Serão marcos instalados onde tem um possível dificultador de identificação de seus limites. Em algumas áreas há um definidor natural, como um rio ou uma estrada. A maior parte da Reserva, no entanto, não tem esses limites naturais, então você precisa desses marcos. Eu entendo que essa é uma tarefa urgente para dar segurança legal para as autuações, para confirmar o que está dentro e o que está fora da Unidade", diz Leandro Travassos.

A demarcação, segundo o biólogo, impulsionará o trabalho dos agentes públicos de fiscalização: "Demarcar é importante para você ter os limites bem definidos. A partir de um determinado momento, o ICMBio passou a atuar apenas dentro do polígono da Rebio. Então, de um lado daquela linha é um procedimento, mas do outro lado é outro, mesmo que biologicamente e ecologicamente isso não faça sentido".

Apesar da extinção da sede própria da Rebio Tinguá e de sua criticada anexação ao recém-criado Núcleo de Gestão Integrada de Petrópolis, que passou a administrar cinco Unidades de Conservação no estado, Travassos, sempre em contato com os servidores do ICMBio, aposta no trabalho dos agentes: "Acredito que eles estejam tentando equacionar e resolver algumas questões pendentes, como a demolição de áreas que já tem decisão judicial ou a questão do monitoramento de possíveis impactos em Miguel Pereira, onde há muitas fazendas e pode ter fogo", diz.

Gestão democrática

Em seu despacho, o procurador Júlio Araújo Júnior determina que a demarcação da Rebio Tinguá seja uma oportunidade para fortalecer a gestão democrática da Reserva, sobretudo com a participação das populações do seu entorno: "O projeto deverá ser executado com vistas a criar um vínculo com a população local. Uma vez demarcada a Reserva e colocados os marcos e placas indicativas, deverá haver uma constante renovação e revisão destes, segundo as necessidades de readequação", diz.

Conhecedor da situação das Unidades de Conservação em todo o Brasil, o advogado ambiental Rogério Rocco ressalta que a gestão de uma Reserva Biológica envolve interesses de grupos distintos e específicos e intervêm no regime de uso de propriedade e na economia local: "A política de conservação precisa ter espaços que permitam o envolvimento de todos os atores que operam no território para que eles possam exercer suas interlocuções e defender seus interesses e também possam compartilhar expectativas de conservação ou de uso dos recursos ambientais. Ou seja, se há uma diversidade de atores com seus interesses próprios, é importante que haja um processo permanente de participação desde a criação da Unidade até sua gestão. Isso é fundamental".

O contexto que cerca Tinguá, diz Rocco, é delicado e demanda uma gestão democrática: "A Rebio Tinguá envolve uma área de alta disputa pelo território que é a Baixada Fluminense e parte da Região Serrana. Tem recursos ambientais que atraem interesses de caçadores, de palmiteiros e outros que buscam ganhos rápidos com a extração irregular da natureza em uma categoria de Unidade que, pela lei, não permite nada, nem visitação", diz.

O problema da visitação irregular, diz o ambientalista, é outro que pode e deve ser gerido de forma inteligente: "A Reserva é demandada para visitação nos finais de semana nos balneários de Xerém e Nova Iguaçu, onde há piscinões e rios que as pessoas usam, em desacordo com aquilo que o regulamento estabelece. Então, tudo isso precisa fazer parte de uma agenda permanente de diálogos, de acertos e de administração desses conflitos. Tinguá, em particular, é uma Unidade com um nível grande de conflitos".

Solicitada pelo Regional por diversas vezes, a assessoria de imprensa do ICMBio não informou quais providências o Instituto está tomando em relação à demarcação e à determinação do MPF.