Uma viagem no tempo guiada pelas penúltimas do carioquíssimo, cronista, letrista, sambista, boêmio...
Por Oscar Valporto
22/05/2020
Planeta Colabora
Edição 294
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Conheci Aldir Blanc pelas páginas do
Pasquim lá na metade final dos anos 70, e ficava lendo o jornal nos intervalos
das aulas a caminho do vestibular. Fiquei íntimo dos personagens de suas
crônicas de Vila Isabel: Penteado, "Tremendo gozador", Waldyr Iapetec, Lindauro
"boçal, mas bom coração", Pelópidas "a tranquilidade em pessoa", Belizário "que
bebia para não esquecer", Lindolfo "maior papo do mundo", Ceceu Rico "que não
gostava de festa", Ambrósio Gogó de Ouro e o hoje já lendário Esmeraldo
Simpatia-É-Quase-Amor, o conquistador da Penha.
Achava que eram todos fictícios - só muito depois descobri que o único
inventado mesmo pelo Aldir era o Penteado, filósofo e criador dos apelidos,
inclusive o inesquecível Dois Carburadores ("bebe muito e vive desregulado").
Também achava eu, adolescente da Zona Sul,
que a Rua dos Artistas, com esse nome, fazia parte da ficção. A partir das
crônicas, comprei o LP Caça à Raposa, álbum que começa com uma trinca de
obras-primas de João Bosco e Aldir Blanc: Mestre Sala dos Mares (Glória
aos piratas, às mulatas, às sereias/ Glória à farofa, à cachaça, às baleias/ Glórias
a todas as lutas inglórias/ Que através da nossa história/ Não esquecemos
jamais/ Salve o Almirante Negro/ Que tem por monumento/ As pedras pisadas do
cais), Dois Pra Lá, Dois Pra Cá (Meu coração traiçoeiro/ Batia
mais que o bongô/ Tremia mais que as maracas/ Descompassado de amor) e De
Frente Pro Crime (O bar mais perto depressa lotou/ Malandro junto com
trabalhador/ Um homem subiu na mesa do bar/ E fez discurso pra vereador).
Só lembro de ter pisado na Rua dos Artistas
ali na virada dos anos 80, depois de um jogo no Maracanã, para comer o já então
famoso risoto de camarão do Restaurante Siri, na esquina com a Rua Almirante
João Cândido Brasil - nenhuma relação com o almirante negro João Cândido
Felisberto, protagonista de Mestre Sala dos Mares. Já tinha Porta da
Tinturaria, segundo livro e com mais histórias de Vila Isabel publicadas no
Pasquim. Eram crônicas da rua, do boteco, de samba e de política. Em 1984, o
apelido do Esmeraldo virava nome de bloco em Ipanema: o Simpatia é Quase
Amor desfilou pela primeira vez no Carnaval de 1985 e, desde o ano
seguinte, eu me visto de amarelo e lilás para sair pelas ruas de Ipanema.
Quando o Simpatia comemorou 30 anos no Carnaval de 2014, Aldir Blanc deu
de presente a primeira estrofe do samba: "Quando eu saio/ na madrugada mais
vadia/ levo um bloco/ no coração por companhia/ Em meu peito, pulsa o amor/ e o
coração sacode numa arritmia/ mas a bateria sustenta a cadência/ Tal a Simpatia".
Os colegas jornalistas Marceu Vieira e Janjão Pimentel, em parceria com Orlando
Magrinho, completaram o samba Balzaquiando o Simpatia vai passar.
Conversei com Aldir uma única vez em algum
lugar na metade dos anos 90. Fui encontrar meu compadre Antero no Bar da Maria,
na Rua Garibaldi na Muda, onde Aldir morou até o fim, e os dois compartilhavam
a mesma mesa. Devia ser mais para a segunda metade porque minha afilhada
Carolina ainda era criança, mas nem tanto porque ficou um tempo no bar - ela
nasceu em 1986. Devia ser perto do Carnaval, porque eles falaram muito mais do
Salgueiro do que do Vasco - eu, salgueirense como eles, mas banguense como
poucos, muito mais ouvi. Aldir era também de comentários curtos e certeiros
como suas crônicas, mas contou histórias do desfile - ou desfiles - do Não
Muda nem Sai de Cima, bloco nascido em frente ao bar e ao prédio onde
moravam ele e seu parceiro Moacyr Luz. O Bar da Maria eu já conhecia, mas foram
pelas crônicas do Aldir, na época no O Dia, que soube da existência de bares
tijucanos como o Momo e seus quitutes - hoje com fama em toda a cidade - e o
Pavão e seu cozido.
A parceria Moacyr Luz & Aldir Blanc me
fez companhia durante minha temporada de oito anos na Bahia: vez por outra, me
pegava cantando Saudades da Guanabara (Chorei/ Com saudades da Guanabara/
Da Lagoa de águas claras/ Fui tomado de compaixão?e então/ Passei/ Pelas praias
da Ilha do Governador/ E subi São Conrado até o Redentor/ Lá no morro Encantado
eu pedi Piedade/ Plantei/ Ramos de Laranjeiras foi meu Juramento/ No Flamengo,
Catete, na Lapa e no Centro/ Pois é pra gente respirar/ Brasil/ Brasil/ Tira as
flechas do peito do meu Padroeiro/ Que São Sebastião do Rio de Janeiro/ Ainda
pode se salvar). Ouvi essa música pela primeira vez na voz de Beth
Carvalho, e depois a ouvi levada pelo Moa e o Samba do Trabalhador no Clube
Renascença, no Andaraí, e no Samba Luzia.
Quando voltei em 2016, o Samba do
Trabalhador já havia completado 10 anos de Rena e tinha até produtos
exclusivos: numa das minhas visitas, comprei uma camiseta com os versos
definitivos de Pra Que Pedir Perdão? (Eu não resisto aos botequins
mais vagabundos/ mas não pretendia te envergonhar). Tinha esperança de ver
e pegar um autógrafo com o Aldir no lançamento dos livros em homenagem aos seus
70 anos. A Editora Mórula, em parceira com a Livraria Folha Seca, promoveu uma roda
de samba festiva numa Rua do Ouvidor lotada. Mas o autor não foi - os amigos
garantiam que ele quase não saía da biblioteca e de sua casa. Comprei Rua
dos Artistas - não sei onde foi parar meu exemplar da Codecri - e Direto
do Balcão, uma coleção de clássicos de botequim pós Pasquim.
Em setembro passado, nos 73 anos do bardo
de Vila Isabel (ou seria da Muda?), estávamos todos na Ouvidor novamente ouvindo
Mariana Baltar, Clarisse Grova e Chico Alves: foram 73 músicas de Aldir Blanc,
na organização do mestre de cerimônias e violonista Tiago Prata. Foi Pratinha
que, no fatídico dia 4 de maio, comandou um gurufim virtual madrugada adentro
no Instagram da Roda do Bip-Bip, outro bar das predileções de Aldir. Vesti a
camiseta dos botequins mais vagabundos, tomei umas em casa (que jeito) e
comecei a lembrar das coisas que estão nestas linhas.
Devo terminar com uma citação de Aldir, mas
é difícil escolher. Descarto os versos da agora premonitoriamente trágica Caça
à Raposa (Ah, recomeçar, recomeçar/ Como canções e epidemias).
Avalio, com profundo carinho, uma citação em homenagem aos botequins: "O
buteco é o último reduto das palavras", ou, da mesma crônica, Crisma,
"O buteco, a última trincheira da gentileza". Considero Resposta ao
Tempo (Batidas na porta da frente/ É o tempo/ Eu bebo um pouquinho/ Pra
ter argumento) tão clássica que deu nome à biografia escrita por Luiz
Fernando Vianna. Acabo decidindo por outra pérola boêmia, menos conhecida, que
lembrei ao remexer no passado no dia 4: Me dá a penúltima - porque as
crônicas e as letras de Aldir Blanc nunca serão as últimas.
Me dá a Penúltima (Aldir Blanc & João
Bosco)
Eu gosto quando alvorece
Porque parece que está anoitecendo
E gosto quando anoitece, que só vendo
Porque penso que alvorece
E então parece que eu pude
Mais uma vez, outra noite,
Reviver a juventude.
Todo boêmio é feliz
Porque quanto mais triste,
mais se ilude
Esse é o segredo de quem,
como eu, vive na boemia:
Colocar no mesmo barco,
realidade e poesia
Rindo da própria agonia,
Vivendo em paz ou sem paz
Pra mim tanto faz,
se é noite ou se é dia.
#RioéRua
Foto 1 - Aldir Blanc com João Bosco numa
mesa de bar em conversa para documentário: cronista carioca das ruas, dos botecos
e do samba. (Reprodução: Aldir Blanc - São Dois para Lá, Dois para Cá)
Foto 2 - Alegoria de kombi com Aldir ao
volante no desfile de 30 anos do Simpatia é Quase Amor, bloco batizado
com o nome de um de seus personagens. (Foto: Divulgação/Sebastiana)
Foto 3 - Aldir com Moacyr Luz na calçada do
Bar da Maria, na Rua Garibaldi, onde ambos moravam: parceria com saudades da
Guanabara. (Reprodução: Aldir Blanc - São Dois para Lá, Dois para Cá)
Foto 4 - Aldir Blanc em sua biblioteca de
onde quase não saía: mais de 600 letras de música e 12 livros. (Foto:
Divulgação)
Foto 5 - Mariana Baltar canta na celebração
dos 73 anos de Aldir com 73 de suas músicas: repertório interminável. (Foto:
Oscar Valporto)