A saga de Manoel Congo
Um símbolo de resistência da raça negra ao cativeiro no estado do Rio de Janeiro
20/11/2020
Escravidão
Edição 320
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Um escravo de nome Pedro, preso por um
capitão-do-mato na freguesia do Pilar na Baixada fluminense, disse pertencer ao
fazendeiro Manoel Vieira dos Anjos, de Paty do Alferes, que, juntamente com o
crioulo forro chamado Antonio, também morador de Serra Acima, denunciaram ao
Juiz de Paz desta freguesia as atrocidades que aquele fazendeiro vinha
cometendo impunemente contra seus escravos.
Encaminhados ao Juiz de Paz daquela
freguesia, José Pinheiro de Souza Werneck, revelaram que aquele senhor havia
matado com pancadas vários de seus escravos, e que mais recentemente matara
Antonio Congo, João Cambinda, Antonio ngelo e Maria Congo, que depois de ter
sido queimada foi levada para um paiol e enforcada. Tendo sido todos enterrados
"ao pé da bica dos marmeleiros" em sua fazenda.
Dizendo ainda que a justiça da Vila de
Vassouras sabia desse fato, inclusive o promotor público, Lucidoro Francisco
Xavier.
Aberto o processo, foi feito o corpo de
delito, constando-se a existência dos corpos no local indicado, sem,
entretanto, "provar" a responsabilidade dos crimes. O acusado se
defendia dizendo que haviam morrido de "morte natural" e que os tinha enterrado
na própria fazenda porque nenhum deles havia recebido "águas do batismo",
e não poderiam ser sepultados em "solo sagrado".
"Julgado" pelo tribunal do Júri em
23 de janeiro de 1839, e sem testemunhas de acusação, temerosas com a violência
do acusado, "não achou o conselho de
sentença, matéria para acusação contra o réu Manoel Vieira dos Anjos", o
tribunal absolve-o por maioria de vinte votos conforme consta nos autos.
Os jurados eram fazendeiros
Os jurados em número de 23 pertenciam à
seleta classe dos fazendeiros e não iriam condenar um confrade pelo "simples"
fato de ter matado alguns escravos. Ele que ficasse com o prejuízo, o que já
seria uma boa condenação.
Este era o clima existente na Baixada,
Serra Acima e Vale do Paraíba durante a primeira metade do século XIX. Exaurido
o ouro das gerais, seus ocupantes voltaram-se para esta região ávidos de lucro,
exigindo o máximo de trabalho de sua escravaria nas lavouras de cana e café.
A Paty de Manoel Congo
Enquanto esta farsa se desenrolava no
tribunal do júri de Vila de Vassouras, um outro escravo era morto pelo
proprietário Manoel Xavier na fazenda Freguesia, o que insuflou a ira dos
cativos da região e, liderados por um negro africano chamado Manoel Congo, que reunindo
cerca de 300 escravos partiu em direção à fazenda Maravilha, propriedade do
mesmo fazendeiro, arrombaram portas e depredaram tudo o que havia pela frente.
Em seguida, aos gritos de euforia,
refugiaram-se na floresta montanhosa chamada de Santa Catarina (hoje Palmares),
criando ali um quilombo, elegendo como seu rei Manoel Congo e sua rainha Maria
Crioula, ficando conhecido como o quilombo de Santa Catarina.
Queimaram a fazenda Maravilha
Após se organizarem, desceram a serra e,
sem encontrar o fazendeiro, terminaram de destruir a fazenda Maravilha,
saqueando comida e armas, arrasando "a pau, machado e fogo" a casa
grande e o engenho.
Como um grito de revolta, estavam
vingando seus irmãos de raça, acorrentados, chicoteados e mortos por uma classe
dominante com sua "justiça", "julgando", absolvendo ou
desconhecendo a prática desses crimes tenebrosos de seus membros.
Manoel Congo armava-se com o que
encontrava nas fazendas, sabia que a reação não tardaria. Ocupava os pontos
estratégicos da floresta, deixando em alerta dia e noite seus comandados; o
preço da liberdade seria pago com sangue.
Corria o boato nas freguesias que um
comando dos sublevados desceria o caminho do Inhomirim e atacaria a fábrica de
pólvora ao pé da Serra da Estrela, na Baixada Fluminense, o que colocaria em
risco a própria capital do Império, a poucos quilômetros desta região.
O levante desafiou o modelo econômico
Esta revolta teve grande repercussão,
chegando até a Corte, deixando indignados os fazendeiros desta província. Como
poderia um bando de escravos maltrapilhos, que eram a escória da sociedade,
desafiarem o modelo econômico e social preestabelecido pelos donos do poder?
Imediatamente foi feito um comunicado ao
comandante da força policial sediada em Niterói "para que envia-se a Paty do Alferes toda a força de que pudesse dispor".
Nesta freguesia, o coronel Francisco
Peixoto de Lacerda Verneck, oficial da Guarda Nacional, reuniu uma força de
mais de 160 homens, organizada em divisões, "tendo cada uma a seu lado um inspetor de quarteirão!"
Criada em 1831, esta organização militar
estava a serviço da classe dominante, "à
disposição do Juiz de Paz, Juizes Criminais, Presidentes de Província e
Ministro da Justiça", cujo objetivo era dar combate a qualquer levante de
escravos que se manifestasse em sua região. Partiu a tropa para a fazenda
Maravilha, onde pernoitou.
No dia seguinte, subiram a serra em busca
do Quilombo de Manoel Congo, seguindo trilhas abertas pelos revoltosos até
encontrarem trinta e três ranchos vazios.
Depois de passarem por mais dois
acampamentos abandonados, continuaram contornando as fraldas da serra das
Araras, sem suspeitarem do alçapão que os escravos estavam armando, sempre
acompanhando do alto a longa coluna de tropa.
À tarde, já cansados, foram surpreendidos
pelos negros aquilombados à beira de um córrego. Em um ofício o comandante
escreveu: "os escravos quando nos sentiram postaram-se em um morro que
ficava fronteiro e dali nos receberam dando uma descarga de mosquetaria", o
que foi respondido pelos militares avançando em filas alternadas. Os negros não
recuaram, usando armas de fogo, facões e espadas, atracaram-se às colunas em
luta corpo a corpo, fazendo-as bater em retirada, deixando pelo caminho dois
soldados mortos e dezenas de feridos. O coronel e seus comandantes corriam de
volta a Paty do Alferes em debandada. No outro dia, uma escolta voltou ao local
do combate para recolher os soldados mortos e feridos.
Dois sentimentos foram despertados, diz o
historiador Eduardo Sciscínio: "O de euforia dos escravos, que, numa visão
errônea da vitória final, multiplicaram as incursões nas fazendas próximas, e o
de vingança dos fazendeiros, que aguçaram o seu ódio aos negros e passaram a
pressionar o Governo Imperial".
O sanguinário Duque de Caxias
Comandados pelo Oficial Luiz Alves de
Lima e Silva, o futuro Duque de Caxias, uma força da Guarda Nacional se
deslocou, em 14 de novembro de 1838, subindo o caminho do Comércio, através da
vila de Iguassu, em direção à Vassouras, juntando-se à guarda local.
Ao chegar na região do conflito, cercaram
o Quilombo com uma força numerosa, os escravos resistiram como puderam: à unha,
à faca, jogando com astúcia e com a vida.
Os vencidos não têm heróis
Os feitos heroicos de Manoel Congo ao lado
de Maria Crioula foram presenciados pelos seus companheiros, mas infelizmente
não ficaram registrados para a história. Os vencidos não têm heróis.
Após os negros baterem em retirada para o
interior da floresta, deixando dezenas de mortos e feridos, Manoel Congo e
Maria Crioula foram levados presos junto com seus companheiros de comando para
Vassouras.
"Caxias
era o tipo escarrado do herói", diz Eduardo Sciscínio, "matou escravos como ele só. Voltou glorioso
apanhando admiração que eram até imorais. As moças jogavam-lhe olhares, os
rapazes batiam palmas, os velhos matavam leitoas em honra dele".
O enforcamento de Manoel Congo
No dia 6 de setembro de 1838, subia ao
cadafalso na cidade de Vassouras para ser enforcado em praça pública aquele que
deveria ser considerado um símbolo de resistência da raça negra ao cativeiro no
estado do Rio de Janeiro: Manoel Congo.
Seus companheiros, Justino Benguela,
Antonio Magro, Pedro Dias, Bellarmino, Miguel Creôlo, Canuto Moçambique e
Affonso Angola, como líderes da revolta, sofreram a pena de seiscentas e cinquenta
chibatadas e gargalheira por três anos. Maria Crioula e os demais foram "absolvidos" e entregues aos seus donos.
Um feito histórico de deveria ser ensinado nas escolas
Liderar uma revolta com cerca de
trezentos escravos numa região comandada pelos "Barões do Café" é um
feito heroico que deveria ser ensinado nas escolas e que, segundo o historiador
Manoel Florentino, "É necessário que haja heróis negros, principalmente para
as crianças negras terem com quem se identificar".
Fonte: IPAHB
Foto 2 - A Gruta de Manoel Congo, em Vera Cruz, Miguel Pereira
Foto 3 - Fazenda Freguesia, hoje Aldeia de Arcozelo - Arcozelo - Paty