A Casa da Hera
Não se conhece com exatidão o período de construção da belíssima casa onde viveu Eufrásia Teixeira Leite, embora uma planta da cidade de Vassouras, datada de 1836, situe o prédio pela metade do século XIX.
05/02/2021
Historiador Sebastião Deister
Edição 331
Compartilhe:
Não
se conhece com exatidão o período de construção da belíssima casa onde viveu
Eufrásia Teixeira Leite, embora uma planta da cidade de Vassouras, datada de
1836, situe o prédio pela metade do século XIX. É com Joaquim José Teixeira
Leite, seu morador a partir da década de 1840, que a casa passa a sofrer
alterações que acompanham a ascensão político-financeira de seu proprietário. Irmão
do Barão de Vassouras (Francisco José Teixeira Leite), Joaquim teve com a
esposa, D. Ana Esméria Corrêa e Castro, apenas duas filhas: Francisca
Bernardina (nascida em 1845) e Eufrásia (vinda à luz em 1850). Foi na chácara
da família que a família viveu a riquíssima época do café, participando da
sofisticada aristocracia criada por aqueles que plantavam e comercializavam o tão
valorizado produto agrícola brasileiro. Como consequência natural do prestígio
e da riqueza de Joaquim José e Francisco José, a chácara transformou-se em
ponto de encontro de lavradores, fazendeiros, barões, banqueiros, políticos e
outros ilustres personagens da sociedade brasileira. Todavia, indiferentes ao
entra-e-sai de carruagens e tróleis reluzentes, Francisca e Eufrásia brincavam
pelos corredores ou corriam alegres e despreocupadas pelos amplos pátios e
jardins do solar sob os olhares atentos de mucamas e escravos.
No anos 1878,
o café começa a mostrar os primeiros sinais de decadência e o prenúncio de seu
colapso nas décadas seguintes. Paralelamente, morrem Ana Esméria, em 1878, e Joaquim José, em 1872. As
filhas percebem o fim de uma época, e decidem deixar o Brasil. É a bordo do
vapor "Chimborazo" que partem para a França em 1873, onde passam a
residir. Chiquinha ali permaneceu até sua morte, em 1899, e Eufrásia até sua
velhice. Na chácara, o silêncio e a penumbra. Da França, o controle permanente,
como nos confirma a correspondência entre Eufrásia e Manuel da Silva Rabelo,
que cuidou da casa por 36 anos. É com ele, em 1887, que é plantada a hera, que
aos poucos vai cobrindo as paredes caiadas e que acabará por identificar a casa
no futuro.
Século
XX. Anos 1920. Eufrásia, agora herdeira única e já com mais de setenta anos,
recomeça a frequentar a Chácara, passando ali temporadas de um, dois ou três
anos, sempre acompanhada da velha mucama Cecília, de francês bem afiado e
dedicação total. Talvez, nesse reencontro com um mundo de meio século atrás, é
que Eufrásia tenha decidido o destino da Casa da Hera e de sua fortuna. Eufrásia
Teixeira Leite veio a falecer em um apartamento na Ladeira da Glória, no Rio de
Janeiro, no dia 13 de setembro de 1930, aos 80 anos, e seu testamento - embora
provocasse algumas polêmicas - iria eternizá-la em Vassouras.
De
fato, sendo ela a única herdeira de Joaquim José e ainda proprietária de outros
bens deixados pelo avô Laureano Corrêa e Castro, institui em seu legado um
vultoso patrimônio que garantisse a construção da Santa Casa de Misericórdia,
recursos aproveitados para a construção do Hospital Eufrásia Teixeira Leite,
moderníssimo para os anos trinta em Vassouras.
Nomeia
ainda, como segundo herdeiro seu, a Congregação das Irmãs do Sagrado Coração de
Jesus, com elas deixando recursos suficientes para a construção de um instituto
educacional exclusivamente feminino - o Instituto Dr. Joaquim Teixeira Leite
(hoje Colégio Regina Coeli) - tendo as irmãs a obrigação de manter, no mínimo,
50 meninas carentes no Instituto e ao mesmo tempo preservar a "...casa dos meus pais..." (atualmente
Museu da Casa da Hera).
Ainda
preocupada com a infância e em especial com as crianças carentes, Eufrásia
também canaliza parte de sua vasta fortuna para a aquisição de um colégio
voltado aos meninos de Vassouras, uma edificação que nos dias de hoje abriga o
SENAI daquela cidade, bem pertinho da Casa da Hera. Em outras cláusulas
testamentárias, a dama deixava 20 contos de réis para serem distribuídos entre
as famílias mais pobres da cidade, uma casa para o "...velho e querido Ramiro...", um ex-escravo a quem ela dedicava
grande carinho, 30 apólices da dívida pública da União para Cecília e 10
apólices em nome de Amélia, suas duas mais féis e amadas criadas, e 50 apólices
para o coronel Júlio Corrêa e Castro, seu primo, ex-dono da Fazenda do
Secretário. Para Maria Conceição e Carolina, duas primas muito estimadas por
Eufrásia, a mecenas vassourense destinava 25 apólices para cada uma,
determinando que outras 50 apólices de seu patrimônio fossem enviadas para a
Fundação Oswaldo Cruz, no Rio de Janeiro.
Na
década de cinquenta, o conjunto arquitetônico já chamado Casa da Hera passou a
constar da lista dos bens culturais e artísticos tombados no país, e o IPHAN acabou
por assumi-lo em 1965.
Circuito
de visitação
Orientado
por guias experientes, o circuito de visitação começa pelo vestíbulo da
residência, o qual dá acesso às três áreas que compõem a Casa: trabalho, íntima
e social. A área de trabalho é composta pelo salão comercial, pelo escritório e
pelas alcovas. Da área comercial, penetrava-se no mundo familiar graças ao
corredor de acesso aos cômodos familiares e pela biblioteca (cujo magnífico
acervo do século XIX reúne cerca de 1.000 volumes), pela espaçosa sala de
jantar e, por fim, pelos demais dormitórios ao lado da copa. A indumentária feminina
do Museu da Casa da Hera tem assinatura predominantemente francesa, incluindo roupas
para passeios e montaria, roupas de noite (vestimentas de festas e trajes de
dormir), não faltando ali os acessórios da época, como leques e sombrinhas
floridas, sapatinhos delicados e chapéus elegantes, em sua maioria também
exibindo griffes francesas. Já o
espaço social da Casa finaliza o circuito de visitação à Casa, nele se
destacando o confortável Salão de Recepções e bela Sala de Música.
Em
tais espaços, é impossível não admirar a finura dos papéis de parede, os
lustres translúcidos, o chão vítreo de centenárias tábuas corridas, a beleza do
piano agora silente, a harmonia dos móveis austeros, a robusteza do fogão de
onde flutuava para toda a casa o perfume incomparável do café moído pelos
braços vigorosos de escravos e mucamas, a luz filtrada que aconchega a alma e
os sopros do ar multitudinário que se infiltra pelo espírito e que parece nos
transportar levemente a um ontem que não quer morrer. Na realidade, o gosto
pela cópia de móveis antigos, tão desenvolvido na Europa em meados do século
XIX, influenciou bastante a família Teixeira Leite quando da compra do
mobiliário para decorar sua chácara. Por essa razão, o conjunto encontrado hoje
na Casa da Hera tem suas peças assinadas por Gebruder Thönet, filho de
Michael e continuador da obra desse importante entalhador austríaco. Na sala de
jantar, onde se destacavam em lautos banquetes as louças francesas de Sèvres
e Paris, realizou-se a célebre reunião em que foi estabelecido o traçado
inaugural do ramal da Estrada de Ferro D. Pedro II, que, enfim, cortaria a área
de Vassouras em direção ao Desengano e sepultaria, involuntariamente, o período
áureo do café naquelas terras históricas.