O grande Armazém de Arcádia

Como por vezes a compulsória parada em Bomfim (Arcádia) mostrava-se demorada em função das atividades de manutenção dos trens, seus passageiros davam-se o luxo de visitar o comércio de subsistência instalado bem ao lado da estaçãozinha,.

 05/03/2021     Historiador Sebastião Deister      Edição 344
Compartilhe:       

É sabido que a Estrada de Ferro Melhoramento do Brasil (que tempos depois seria rebatizada como Estrada de Ferro Central do Brasil), mandada construir pelo Imperador D. Pedro II e dirigida pelo engenheiro André Gustavo Paulo de Frontin, responsabilizou-se pela implantação da chamada Linha Auxiliar conectando Belém (hoje Japeri) a Três Rios, com prolongamento ulterior até Porto Novo do Cunha (Além Paraíba - Minas Gerais). Por conseguinte, os trilhos foram cravados no Vale do Rio Santana atravessando logradouros como Paes Leme, Sertão (agora Conrado) e Bomfim (Arcádia) para em seguida subir a Serra da Viúva em demanda de Vera Cruz, Governador Portela, Miguel Pereira, seguindo daí para Paty do Alferes e demais estações do vale médio do rio Paraíba do Sul.

Como por vezes a compulsória parada em Bomfim (Arcádia) mostrava-se demorada em função das atividades de manutenção dos trens, seus passageiros davam-se o luxo de visitar o comércio de subsistência instalado bem ao lado da estaçãozinha, representado por um grande e confortável empório de secos e molhados, cujas dependências (hoje sofrendo as injúrias do tempo e um lamentável abandono) abrigavam um posto comercial que atendia, também, algumas famílias instaladas pelas proximidades da estação e, principalmente, recebiam os produtos oriundos da fazenda Monte Ararat criada pelo barão Wilhelm Raban von Mentzingen, agricultor de origem alemã que passara a cultivar café pelas encostas de Bomfim. Lembre-se, ainda, que a fazenda deixou nas colinas de Arcádia uma pequena em interessante capela dedicada à Nossa Senhora do Bomfim, origem do primeiro nome dado ao local.

O armazém, levantado quase inteiramente em um misto de pau-a-pique e adobe com pesados alisares de pedra de cantaria sustentando oito largas portas (cinco frontais e três laterais), fornecia aos visitantes os mais variados artigos de alimentação e materiais básicos para atividades domésticas, como insumos de limpeza e higiene, além de ferramentas e artefatos variados, entre eles tesouras, pregos, parafusos, serrotes, martelos, arame, linhas para costura, carreteis, tecidos, botas etc. Toda sua estrutura apoiava-se em enormes barrotes capazes de suportar, inclusive, o choque das águas do rio Santana quando de suas cheias assustadoras, como aconteceu em 1945 por ocasião da terrível inundação que atingiu vastas áreas de Paty do Alferes, Miguel Pereira, Vera Cruz, Arcádia e baixada de Paes Leme, levando consigo, inclusive, a ponte que conectava as duas margens do rio, reconstruída muitos meses depois.

Por outro lado, o prédio destacava-se na paisagem por peculiaridades estruturais remetidas ao neoclássico, como, por exemplo, sua clareza construtiva e sua evidente inspiração na arquitetura romana caracterizada pelo uso direto e visível de formas geométricas bem definidas nas quais se destacam contornos e esquadrias retangulares e simétricas.

Outro detalhe que chama a atenção na obra é o seu expressivo aspecto linear em que foram utilizadas algumas decorações mais sofisticadas e resistentes como pedra de cantaria, granito e imitação de mármore no entablamento(1) superior da estrutura. Com efeito, a montagem de sua platibanda(2) encimava a fachada principal, encobrindo com elegância todo o contorno do prédio e ocultando, assim, a presença da telharia. Todo esse debrum tinha a cobertura de uma ornamentação artificialmente marmorizada habilmente manipulada em estuque, isto é, uma bordadura que, à primeira vista, de fato oferecia o nítido e belo aspecto de placas de mármore, mas que, na realidade, nada mais era do que um desenho caprichoso e de muito bom gosto que saltava à vista. Por cima da cornija(3), ao longo de todo o frontão, apareciam vinte e dois óculos que permitiam a entrada de ar, refrescando assim todo o ambiente de serviço. Internamente, madeiras nobres como pinho-de-Riga, peroba e cedro foram fartamente utilizadas na confecção de elementos decorativos, portas de circularidade entre os vários ambientes e balcões de atendimento, atestando assim a qualidade e o refinamento daquela belíssima obra, cujos construtores, infelizmente, não puderam ser identificados.

Registre-se, ainda, que em 1938 os sócios Pullig e Rizzo, membros de duas tradicionais famílias de Avelar, montaram um posto de desnatamento em um anexo do armazém valendo-se da produção leiteira provinda de pecuaristas da região periférica de Bomfim, em especial das fazendas Livramento e Capote localizadas na estrada de ligação com o Lagoa das Lontras. O empreendimento durou cerca de sete anos, uma vez que após a grande enchente de 1945 toda a estrutura do prédio mostrou-se bastante comprometida, e os prejuízos causados pela perda de equipamentos levaram os sócios a encerrar suas atividades.   

Devido à sua posição geográfica, Arcádia foi a única estação da Linha Auxiliar levantada paralelamente ao rio Santana, cujas águas por vezes eriçadas(4) e violentas podiam ser vislumbradas dos trilhos a partir de sua modesta plataforma de embarque.

Esse logradouro teve ainda outra significação especial para Miguel Pereira nas décadas iniciais do século XX.


Dali partiu a estrada de terra que ligou a base da Serra da Viúva com a localidade de Governador Portela, muito utilizada pelos tropeiros da região ao longo dos primitivos tempos de colonização de tal área. Alargada e bem melhorada em seu piso lá pelos anos trinta, a primeva estrada de rodagem - hoje Rodovia RJ-125 - acabou sendo o principal elo terrestre com Japeri, configurando, desde a década de cinquenta, o eixo econômico-financeiro e turístico dos distritos miguelenses, muito embora tal atividade rodoviária, representada, principalmente, pela chegada de transportes coletivos e pelo fluxo de caminhões mais rápidos que o trem, determinasse a desativação dos comboios ferroviários que por muitos anos ligaram nossa cidade à Baixada Fluminense.

Um grupo de empresários, capitaneado por Rogério von Rybroek (dono das fazendas São João da Barra e Monte Ararat) resolveu implementar um projeto de restauração daquele prédio histórico. Segundo eles, não há, ainda, um objetivo específico para a utilização dos seus espaços. A preocupação de todos, no momento, é recuperar estruturalmente o grande armazém dando a ele, futuramente, um destino digno de sua beleza e de suas antigas utilidades.

 

(1) Parte superior de uma construção, acima das colunas

(2) Espécie de mureta construída na parte mais alta das paredes externas de uma construção, para proteger e ornamentar a fachada.

(3) Moldura saliente que serve de arremate superior à fachada de um edifício, ocultando o telhado e impedindo que as águas escorram pela parede

(4) Ouriçado, arrepiado

 

A partir da próxima semana: Famílias Pioneiras e Seus Brasões de Armas