Cap.13 - A Escravidão em terras de Barreiros

A Trajetória Histórica do Município de Miguel Pereira

 29/10/2021     Historiador Sebastião Deister      Edição 369
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Todos os trabalhos executados durante a colonização e o Império Brasileiro dependeram de braços fortes e ágeis, e esses eram fornecidos em quase sua totalidade pelos negros escravos. Com efeito, a estrutura de produção daqueles períodos jamais poderia prescindir do serviço escravista, principalmente quando levamos em consideração as imensas áreas de terras ocupadas pelos grandes latifundiários do Vale do Paraíba e a própria indolência tão típica dos senhores portugueses.                 

O Brasil foi, de fato, o maior país importador de escravos de todas as épocas, encharcando seu solo tão fecundo com o sangue de milhões de negros e criando uma crônica de abominação, crueldade e barbárie que maculou para todo o sempre sua própria História como nação, empanando assim suas conquistas socioeconômicas. Com efeito, apenas entre 1502 e 1870 foram arrastados ao Brasil nada menos do que 3.532.315 escravizados! Com efeito, há que se registrar que as riquezas dos nobres portugueses e de seus descendentes nunca teriam vindo à luz, e eles próprios não alcançariam os patamares de poder que lograram atingir, se não houvesse os braços negros a trabalhar sob o sol senegalesco dos nossos verões ou debaixo das copiosas chuvas tropicais que assolavam nossas serranias, por vezes esfaimados, frequentemente desnutridos, ocasionalmente doentes, e sempre e sempre maltratados.

De fato, eram os negros os responsáveis diretos pela escolha das sementes e pelo preparo da terra, esta diariamente adubada pelo seu suor e ensopada constantemente pelo seu sangue; eram eles que plantavam em encostas íngremes e escorregadias ou em vales profundos e enlameados; aos negros cabia a pavimentação de ruas com as pedras por eles mesmos talhadas, o derrubar do capim, a poda das árvores, a colheita das frutas, o destruir de casas de cupins, o cavar de fossas e a abertura de valas ou canais de irrigação; eram eles que tomavam todos os cuidados com as primeiras germinações de múltiplas lavouras, comprometendo-se com o incessante arrancar de ervas daninhas, com a colheita das safras na época correta e com o transporte dos valiosos produtos das fazendas para o mercado da cidade grande; também a eles competia girar a moenda para esmagar a cana e dela retirar o caldo para a preparação de aguardente ou triturar o milho para a fabricação de fubá; eram os negros - sempre sofridos, sempre humilhados, posto que onipresentes - os melhores e mais cuidadosos tratadores de animais e de jardins, de hortas ou pomares; eram eles que carregavam pedras e madeira para erguer as paredes de vivendas ou que subiam aos telhados para cobrir palacetes e casarões com as telhas que moldavam em suas próprias coxas musculosas, eliminando eventuais goteiras ou concluindo a cobertura de novos anexos e outras varandas; eram também os negros os guarda-costas dos empertigados senhores brancos, os protetores das crianças das fazendas e os carregadores de madames em suas liteiras de cortinas rendadas.

Por sua vez, eram as mucamas "de porta a dentro" que não deixavam as jarras sem flores, que apertavam os espartilhos das senhoras baronesas para que sua obesidade fosse camuflada por panos e rendas, que raspavam o espermacete derramado por sobre mesinhas de cabeceiras e providenciavam a colocação de novas velas nos candelabros, lustres ou arandelas, que trocavam a toda hora as toalhas dos lavabos, que transportavam para o riachos os dejetos noturnos lançados aos penicos, que estendiam nos pátios os cobertores e as fronhas esfregados nos grandes tanques de água, que enchiam talhas e filtros de barro com a água trazida das cacimbas, com a qual também abasteciam as jarras de dormitórios, que verificavam o tempero dos quitutes levados à mesa, que batiam o cheiroso café e outros grãos nos pilões, que lavavam o chão de pedra das cozinhas e varandas e eventualmente limpavam os sujos narizinhos dos moleques ou banhavam os bebês das sinhazinhas, trocando-lhes com carinho e suavidade as fraldas sujas e as toucas amarrotadas.

Eram as habilidosas negras instaladas nas cozinhas as responsáveis pelo assar de bolos e pães, pelo passar do café em alvos coadores de pano, pelo atiçamento do fogo nos grandes fogões de ferro e tijolo com o uso de tenras achas de eucalipto, pelo mexer de doces nos grandes tachos de cobre, pelo brunir de talheres e louças, pelo depenar de frangos e patos, pelo frigir de ovos, pelo esmagamento de cabeças de alho e pelo descascar sofrido de grandes cebolas, enquanto negrinhas tiravam a poeira de móveis e tapetes, esfregavam vidraças e poliam estatuetas e pratarias dos grandes salões de festas, deixando a cargo dos negrinhos o esfregar de cavalos no pátio, o transportar de lenha para a cozinha, o cuidar e o alimentar de cães, o jogar de milho às aves, o lavar dos baldes que recebiam o leite tirado de vacas e cabras e, por vezes, o espantar de insetos que rondavam os sacos repletos do rico café.

Os negros eram ainda carpinteiros, sapateiros, falquejadores, pintores, adestradores de cavalos, cozinheiros, copeiros, cocheiros, cavouqueiros, ferreiros, tropeiros, alfaiates, enfim eles eram tudo para a base da vida diária sem a qual as grandes propriedades por certo afundariam no lodaçal da então visível incapacidade do homem branco que praticamente nada fazia, não pelo fato de não querer ou poder, mas sim pela constrangedora verdade de não saber. 

Ironicamente, para um ser humano vilipendiado, desumanizado e que era tratado como "um simples animal de trabalho que sabia falar", as tarefas mais comezinhas, os serviços mais elaborados e os trabalhos que exigiam habilidade, força, criatividade e competência eram repassados justamente para suas mãos robustas, ágeis e qualificadas, enquanto os senhores brancos - acomodados em sua imperícia e indolência - estagnavam-se cada vez mais na sua pretensa superioridade racial, o que por certo levou o historiador Júlio José Chiavenato, em um rasgo de perfeita e profunda interpretação da tal época, a nos brindar, em sua obra "O Negro no Brasil - Da Senzala à Guerra do Paraguai", com a seguinte e admirável passagem:

 

"Tudo no Brasil girou em torno da escravidão. O Brasil não existiria sem os negros: este país é obra deles. O seu chão fértil está ensopado pelo sangue negro... Sem esse dado não se entende o Brasil."

 

Os negros foram, sem contestação, a mola mestra tanto da economia colonial quanto do perdulário crescimento do Império, e prova maior disso e que, após a Abolição - supostamente misericordiosa e libertária para os negros, mas na realidade uma afiada guilhotina social para todos eles -, as arrogantes e venturosas fazendas e seus emproados proprietários mergulharam numa vertiginosa e inexorável decadência da qual não lograram escapar, embora a nova ordem, sem qualquer rasgo de piedade, também lançasse os negros libertos à fome, à miséria, à mendicância, ao roubo, às favelas, ao total desamparo familiar e um a inconcebível preconceito social vigente em pleno século XXI!

 

Na próxima edição: Outras Fazendas Periféricas ao Povoado de Barreiros