As entidades Médico-Assistenciais
Capítulo 27. A Trajetória Histórica do Município de Miguel Pereira
11/02/2022
Historiador Sebastião Deister
Edição 384
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No decurso das décadas de trinta e quarenta,
Governador Portela e Miguel Pereira dispunham tão-somente de dois ou três
consultórios, mantidos a duras penas pelos pioneiros médicos de nossa terra,
como Osvaldo de Araújo Lima, Radamés Marzullo, João Plínio Werneck e Arthur Wängler,
que socorriam seus pacientes na medida de suas limitadas condições técnicas e
assistenciais, já que era crônica a falta de medicamentos e equipamentos
necessários aos tratamentos de determinadas moléstias comuns à roça.
De fato, as pioneiras farmácias da época
transformavam-se em verdadeiros centros de assistência de saúde, nas quais os
farmacêuticos Bonifácio de Macedo Portella e José Ferreira Gomes por vezes
substituíam os médicos nos atendimentos de várias doenças comezinhas,
especialmente resfriados, dores de ouvido e de garganta, dentes inflamados,
cólicas intestinais, diarreias, escoriações e cortes e raladuras em moleques
mais arteiros ou, por vezes, ferimentos mais profundos causados com pás ou
enxadas de um lavrador desatento.
Por outro lado, os partos sempre eram um sofrimento,
porém as gestantes não tinham o costume de buscar um profissional de saúde, até
mesmo pela simples razão de todos serem homens. Assim, o constrangimento e o
preconceito levavam-nas a buscar os serviços das parteiras do lugar, em geral
mulheres experientes e até mesmo treinadas em tais urgências, o que não
evitava, contudo, o perigo de sequelas orgânicas ou o aparecimento de febre
puerperal entre as mães recentes das vilas. Entre tantas mulheres com essa
habilidade, destacou-se em Miguel Pereira Tia Sílvia, a neta de escravos
chegada da fazenda Pau Grande.
Osvaldo e Marzullo mantinham suas modestas clínicas
- na realidade, saletas pequenas, pouco arejadas e precariamente equipadas -
nas decrépitas casinholas erguidas anos antes por Zeca Leal na rua da Igreja
(hoje rua Maria José), mas frequentemente viam-se obrigados a utilizar os mais
insólitos meios de transporte a fim de socorrer um paciente que morava em local
muito distante do "centro" das vilas. Eventualmente, um parto complicado, um
braço subitamente quebrado, uma picada de cobra, um pé cortado por uma foice
mal manejada, uma febre inexplicável ou uma repentina dor no peito arrancavam
aqueles abnegados paladinos da Medicina de suas camas aconchegantes diretamente
para o lombo suado de uma cavalo, para o sacolejar enjoativo de uma carroça
desconjuntada e - quantas vezes! - para o desconforto e a morosidade de um
choroso carro-de-bois. Quisessem ou não, lá iam sobraçando a clássica maleta
preta de primeiros socorros pelas estradas de São José das Rolinhas, do Cupido,
de Ferreiros, de Portela, de Paty, do Pantanal ou mesmo de Vera Cruz, um dia
sufocando com a poeira, outro mergulhando na lama pegajosa e voraz das colinas,
segurando seus vidros com medicamentos nos bolsos dos paletós, mantendo firme
na cabeça seus chapéus amarrotados e levando na alma um pouco de esperança a
quem sofria. A despeito dos dias estafantes, das noites mal dormidas e dos
proventos irrisórios, esses médicos jamais se permitiam uma resposta negativa a
quem quer que fosse: pobres e ricos, roceiros e citadinos, burgueses e
políticos, comerciantes e ferroviários, homens e mulheres, crianças e adultos,
todos recebiam o mesmo tratamento, ganhavam as mesmas benesses de remédios
gratuitos, eram examinados e tratados com a mesma solidariedade e o mesmo
carinho que tanto pautavam a vida exemplar daqueles samaritanos invulgares.
Claro está que tal tipo de atendimento médico não
perduraria para sempre na serra. Afinal, muitas vezes atendiam-se duas ou três
chamadas de urgência enquanto várias outras solicitações mantinham-se em
compasso de espera. Tornava-se imprescindível, portanto, centralizar na cidade
a assistência médica da época, a fim de que os doentes pudessem procurar os
médicos num único local de maneira constante, regular e mais confortável.
Foi a partir dessa constatação óbvia - não
implementada até então por absoluta falta de recursos - que se iniciou em
Miguel Pereira um movimento voltado para a construção de um pequeno
hospital-ambulatório, em cujas dependências os médicos e enfermeiros pudessem
oferecer um atendimento mais eficiente à população e, ao mesmo tempo,
dispusessem de leitos para a internação de eventuais casos urgentes ou
crônicos.
Ambulatório Joanna D´Arc
Em 1941, iniciava-se a construção do Ambulatório
Joanna D´Arc, ao lado dos trilhos da via férrea, bem ao lado do Sítio
Samambaia, da família Machado Bitencourt, surgindo ali um prédio que até hoje
praticamente nada perdeu de suas características arquitetônicas originais. Naturalmente,
as obras não se completaram de imediato, pois elas dependiam das contribuições
dos moradores mais abastados da cidade no que se referia à necessidade de
cimento, tijolos, esquadrias para janelas e portas e materiais hidráulicos e
elétricos. O serviço arrastou-se por algum tempo, mas tão logo a estrutura
principal foi concluída, o Ambulatório entrou em funcionamento. Sabe-se que, em
1944, o corpo principal do edifício encontrava-se pronto, e a partir daí
algumas famílias mais solidárias resolveram anexar à obra outra sala destinada
a abrigar uma escolinha primária.
Não foi possível descobrir quem batizou o
ambulatório com o nome Joanna D´Arc, mas tem-se como certo que este título
derivou do Centro Espírita da cidade fundado em 1921. O fato é que a mesma
designação foi repassada para a pequenina escola que ali funcionou por meses,
até seus alunos serem transferidos para a recém-criada Escola 13 de Maio, na
rua Cipriano Gonçalves.
O testamento de Von Maner
Nos anos cinquenta, o Ambulatório Joanna d´Arc
viu-se aquinhoado por uma dádiva extraordinária. O testamento deixado por um
antigo morador da cidade, de sobrenome Von Maner - provavelmente de origem
alemã -, era aberto na Comarca de Vassouras, e nele uma surpreendente cláusula
citava claramente que toda sua fortuna devia ser repassada para o Centro
Espírita Joanna D´Arc, com uma única exigência: o dinheiro devia ser empregado
na construção do Hospital Altamira, na rua São Luiz (atual Cipriano Gonçalves,
no bairro Buraco dos Burros). Ora, uma vez que o Ambulatório Joanna D´Arc,
ligado ao Centro Espírita, estava totalmente concluído, não fazia sentido erguer-se
outro hospital na cidade, mas sim empregar a herança recebida em obras
complementares do prédio existente e na aquisição de equipamentos próprios para
sua pioneira enfermaria, providência sensata de pronto tomada pelos seus
administradores e corroborada pelo Juiz da Comarca de Vassouras.
Se levarmos em consideração a reduzida população de
Miguel Pereira na época, o Hospital/Ambulatório Enfermaria Joanna D´Arc vinha
constituir um luxo para seus pacientes, já tão acostumados às agruras de um
atendimento precário e desconfortável em toda a região. Dotado de quatro amplos
quartos, oferecia ainda banheiros asseados e espaçosos, saleta própria para
laboratório, salão de recepção, serviço médico diário, Raios-X e leito para
emergências. Sua localização estratégica também facilitava a chegada de doentes
de outras localidades próximas, visto que eles poderiam vir de ônibus ou
automóveis - que estacionavam à porta - ou mesmo de trem, pois nos fundos do
prédio havia uma providencial parada construída pela direção da ferrovia
exatamente para auxiliar os serviços daquele posto médico.
Subposto de Saúde do Estado funcionou no
Ambulatório Joanna D´Arc
O próprio Subposto de Saúde do Estado passou a funcionar
no Ambulatório Joanna D´Arc no final dos anos cinquenta, até o Prefeito José
Antônio da Silva transferi-lo, em 1962, para o Posto de Saúde do bairro
Pantrezina, na Praça da Ponte.
Pelo exposto, podemos perceber que a partir da
década de 1950 o atendimento médico regular concentrava-se quase que
exclusivamente neste pequeno hospital, num subposto mantido pelo Estado e ainda
na Clínica São Miguel, do Dr. Virgílio Mauro Miguel Pereira. Embora o município
já possuísse na ocasião um razoável número de médicos, enfermeiros e dentistas,
faltavam-lhe, na realidade, instalações mais amplas e modernas e também um
número maior de equipamentos que eliminassem de vez a carência hospitalar da
região, fato que se mostrou ainda mais urgente após a emancipação, quando nosso
território já apresentava um expressivo crescimento urbano e demográfico.
Na próxima edição: Outras
Atividades Médico-Assistenciais do Passado