Apogeu e queda da Sociedade Força e Luz Vera Cruz - Parte 6
No dia 26 de março de 1945 - uma segunda-feira que amanhecera triste e nublado depois de uma semana de chuviscos intermitentes - todas as vilas serranas descobriram-se repentinamente engolfadas pela mais devastadora enchente
01/09/2023
Historiador Sebastião Deister
Edição 465
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No dia
26 de março de 1945 - uma segunda-feira que amanhecera triste e nublado depois
de uma semana de chuviscos intermitentes - todas as vilas serranas
descobriram-se repentinamente engolfadas pela mais devastadora enchente de que
se tem notícia até hoje em Miguel Pereira e Paty do Alferes.
Naquela
infausta data, a Natureza despejou sobre as vilas desamparadas toda a sua fúria
colérica e incontrolável: as águas turbilhonantes e demolidoras
assenhorearam-se de colinas e várzeas, de grotões e outeiros, de arraiais e
fazendas, de ruas e estradas, de estações e leitos da via férrea, mergulhando a
região num mar de lama e detritos de proporções incalculáveis.
Casebres
humildes de pau-a-pique foram arrastados pela torrente densa e implacável, e
verdejantes plantações desapareceram tragadas por aquela enxurrada barrenta e
apocalíptica. Troncos inteiros de bananeiras e galhos de árvores rasgados pela
ira dos ventos passavam boiando pelo alagado centro de lugarejos em pânico,
reses e aves perdiam-se no caudal impiedoso, cães em alvoroço e cavalos em
total desespero buscavam fugir para os pontos mais altos dos morros das
cidades, proprietários de armazéns e bares apenas acompanhavam, entre inertes e
atormentados pela tristeza, o sobrenadar enlameado de seus víveres e
equipamentos para as ruas de pronto transformadas em rios súbitos, caudalosos e
barulhentos e - desolação total! - as Usinas de Vera Cruz e Manga Larga, tão
carinhosa e arduamente construídas, viram-se engolidas pela inundação diluvial
que deixou em seus lugares apenas os escombros dos alicerces de pedra que
ousaram resistir ao impacto daquelas águas formidáveis e exasperadas!
Passado
o espanto provocado por aquele pesadelo inimaginável - cessado tão rapidamente
quanto começara -, os moradores de Avelar, Paty do Alferes, Miguel Pereira e
Portela e os mais distantes moradores da baixada de Conrado prostraram-se no
desespero e na aflição, tentando avaliar, num terror de naufrágio, os
imensuráveis prejuízos causados por aquela devastação horrenda e buscando,
embora inutilmente, adivinhar as razões para o castigo bíblico e inenarrável
que se abatera sobre sua terra.
Contudo,
era preciso recensear suas dores, abafar a angústia de suas almas, enumerar
seus mortos, relacionar suas perdas materiais e aquilatar suas possibilidades
de futuro numa terra agora arruinada e ainda mais empobrecida. No rastro de
miséria, ruínas e doenças que tal catástrofe deixara, a imparcialidade da cega
punição imposta pelo inesperado furor da Natureza afligira ricos e pobres,
brancos e negros, avelarenses e patienses, miguelenses e portelenses, deixando
como herança para centenas de famílias espoliadas pelo sofrimento apenas uma
opção: recomeçar, reconstruir, reviver...
Por
entre os destroços de suas vilas queridas, e enfrentando o repto de um destino
talvez injusto, posto que agressivamente real, as populações da serra novamente
manifestaram a fibra que tanto caracteriza os seres que dependem da roça e das
montanhas: habituados aos permanentes
desafios de uma existência que jamais lhes oferecera facilidade,
acostumados a escalar colinas inóspitas e serranias íngremes à busca de um
cantinho de paz, amando sua terra acima de qualquer outro bem material,
conduzindo por mãos calejadas e trêmulas os filhos tristonhos e perplexos que
precisavam criar e educar, guiados e encorajados por alguns líderes
comunitários que de imediato sobrepuseram-se àquele medonho instante de
assombro e medo, os valentes moradores da serra flagelada murmuraram suas
preces sentidas e esperançosas, agradeceram a Deus pela muito de vida que
ficara preservada, reuniram-se nas praças ainda naufragadas naquela lama
diluvial e funesta, sepultaram alguns poucos mártires inocentes, inumaram as
carcaças dos animais fulminados pelo desastre e juraram a si próprios colocar
tudo de pé outra vez, ressuscitando daquele caos hediondo suas vilas e povoados
tão queridos.
Tracionado
pela maria fumaça, o lastro da Estrada de Ferro partiu com imensa dificuldade
para as machucadas entranhas das colinas de Fragoso e Vera Cruz, para retirar
dos trilhos ofendidos e indefesos os monturos de barro e pedras neles
arremessados pelos deslizamentos ciclópicos das encostas da via férrea, abrindo
caminho para que os trens voltassem a circular e buscassem, na capital, socorro
médico, mantimentos de primeira necessidade, material de construção, vacinas e
remédios, roupas e cobertores, e principalmente equipes da ferrovia que
pudessem colaborar na reconstrução da Linha Auxiliar.
Assim,
as cabeças e bases dos viadutos Paulo de Frontin e Santa Branca viram-se
vistoriadas com cuidado e logo reforçadas, as passagens de nível com eventuais
estradas de rodagem ganharam uma rigorosa e enérgica limpeza, os trilhos
retorcidos e arrancados do leito e os dormentes despedaçados foram de imediato
substituídos por novas peças, profundos cortes de ribanceiras receberam um
nivelamento mais seguro para impedir outras quedas sobre o leito da ferrovia,
troncos de árvores foram serrados e logo arrastados para longe pelo
limpa-trilhos das locomotivas, entulhos de macadames, pedregulhos e galhos
acumularam-se no interior de vagões para um posterior incineração e novos
postes para a fiação do telégrafo seletivo foram cravados junto aos trilhos,
enquanto semáforos novinhos iam sendo apostos nos cruzamentos com as vias de
terra.
Com
denodo e persistência, chapinhando na lama viscosa das colinas injuriadas,
levantando em seus braços exauridos os pedaços de trilhos arrebentados pela
tragédia, martelando aqui e ali os cravos em dormentes de eucaliptos, ligando
fios e ajustando chaves de força, levantando postes, lubrificando locomotivas e
vagões, inspecionando pontes e mata-burros, transportando para lá e para cá
centenas e centenas de carrinhos de mão repletos de terra e areia, os
admiráveis ferroviários de nossa terra rapidamente colocaram a via férrea em
plenas condições de receber os comboios que novamente trouxeram para nossas
cidades novos imigrantes, novas famílias de pioneiros, novas riquezas e,
principalmente, a esperança de novos e felizes tempos para nossas populações.
Imagem: Leito ferroviário
destruído nas proximidades de Arcádia
Na próxima edição: Apogeu e Queda da Companhia
Força e Luz Vera Cruz - Parte 7