Apogeu e queda da sociedade Força e Luz Vera Cruz - Parte 7
Após a grande tempestade de 1945, carros de bois e carroças de mulas tangidos pela urgência de trabalho dos caboclos
09/09/2023
Historiador Sebastião Deister
Edição 466
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Após a grande tempestade de 1945, carros de bois e
carroças de mulas tangidos pela urgência de trabalho dos caboclos ainda
traumatizados por tamanho infortúnio rodavam lentamente pelas ruelas das vilas
atarefadas, carregando os destroços deixados pela tempestade. Por todos os
cantos da serra, limpavam-se córregos e canais sufocados pela lama fétida,
rasgavam-se valetas para que a água empoçada e malcheirosa desaparecesse de vez
da vista e das narinas dos moradores aturdidos e nervosos, recolhiam-se aos
abrigos improvisados reses famintas, cavalos assustados, cachorros perdidos e
aves extraviadas, abrigavam-se em casas de parentes e amigos alguns eventuais
desabrigados e cuidava-se, através da colaboração notável e voluntária de
médicos insones e incansáveis - como Osvaldo de Araújo Lima, Arthur Wängler, Radamés
Marzullo, João Plínio Werneck e Heitor Gouvêa Lima - para que doenças
traiçoeiras e oportunistas, como o tifo, a influenza, as verminoses, a amebíase
e a leptospirose não dizimassem a população em epidemias implacáveis.
Aqui e ali erguiam-se paredes mais sólidas, ajustavam-se portas e
janelas, varria-se o lixo, queimava-se o entulho, levantavam-se cercas e
portões, derrubavam-se os vacilantes restos de muros, organizavam-se mutirões,
batia-se o martelo, ouvia-se o alegre rangido de um serrote ou o cavar de uma
enxada, plantavam-se novas mudas de árvores, desentupiam-se bueiros,
fincavam-se pelas ruas postes mais resistentes, esticavam-se fios elétricos
pela casas, descarregavam-se novos materiais e inéditos artefatos de
construções dos trens e escutavam-se pelas estações as ordens severas, porém estimulantes,
de engenheiros, pedreiros, maquinistas, escriturários, pintores e carpinteiros.
Já nas igrejas dos queridos padroeiros Santo Antônio (em Miguel Pereira)
e Nossa Senhora da Conceição (em Paty), o pároco Frei Olivério Baxmann,
preocupado, porém confiante, acompanhava súplicas de fiéis entristecidos,
promovia novenas reconfortantes e referendava promessas aos oragos maiores da
serra. Participativo como sempre fora e dinâmico por natureza, o padre oficiava
missas votivas, rezava contritas ladainhas e após os cultos matinais dobrava a
barra de sua batina franciscana, trocava suas sandálias de pastor por prosaicas
botas de borracha, arregaçava as mangas do seu hábito, ajustava com firmeza o
cíngulo em sua cintura um tanto rotunda, punha um chapéu de palha para proteger
a tonsura ampliada por uma calvície já
visível e, ferramentas à mão, juntava-se aos leigos nos esforços daquela
portentosa ressurreição!
Em meio à azáfama da reconstrução, Lagrotta e seu
contingente de colaboradores estabeleceram novas sociedades com as famílias de
Bento e Mário Sampaio, proprietários de terrenos e casas em Vera Cruz - onde a
cheia do rio Santana também despejara sua ira ciclônica pelos indefesos veios
da serra, a ponto de quase levar em seu roldão invencível a centenária e
histórica Fazenda da Piedade - e auxiliados pela Light, que pouco tempo antes
da inundação, passara a fornecer apoio logístico e técnico à usina de Vera
Cruz, puseram-se outra vez a erguer febrilmente as instalações de sua empresa
naquela localidade ainda devastada e profundamente ferida pelo temporal.
Por questões técnicas e financeiras, a Usina de
Manga Larga de Cima, em Paty do Alferes, não mais seria reconstruída, e por
consequência Vera Cruz e Santa Branca concentraram em suas dependências todos
os serviços de produção, armazenamento e distribuição de energia para toda área
do Tinguá.
Seis
meses de escuridão
Por quase seis meses, os povoados serranos
mantiveram-se privados dos benefícios proporcionados pela energia elétrica,
convivendo heroicamente com a escuridão que imaginavam não ter mais de
enfrentar depois do alvissareiro advento de suas usinas, assim retornando ao
forçado convívio de lampiões, lamparinas e velas abandonados num passado
praticamente esquecido.
Por outro lado, durante esse inesperado período de
trevas e ao mesmo tempo que Lagrotta e sócios punham-se a refazer as Usinas de
Vera Cruz, o Sr. Hermano Germini encarregava-se de aperfeiçoar e patrocinar as
ampliações de uma subestação de energia elétrica em Morro Azul (Eng. Paulo de
Frontin), ligada ao sistema de Vassouras, dali provendo energia suficiente para
abastecer Portela e com isso aliviando, por um bom lapso de tempo, os serviços
de geração ligados a Vera Cruz.
Lenta, mas firmemente, a pioneira Companhia Força e
Luz Vera Cruz reergueu-se do desastre. Com o tempo, duas usinas entraram em
funcionamento, e de pronto a empresa novamente estabeleceu suas conexões com
Miguel Pereira e Paty do Alferes através de linhas e posteação que mais uma vez
desbravaram matas e colinas da região a partir das cercanias da Igreja de Nossa
Senhora da Piedade (pelo tortuoso caminho conhecido como Estrada dos Meninos,
que hoje conduz à torre da Embratel, a cavaleiro de Miguel Pereira) para enfim
alcançar os transformadores em sua subsede na atual rua Luiz Pamplona.
Administrada por homens de larga visão, coragem exemplar, reputação
ilibada e credibilidade absoluta, a Sociedade Anônima Força e Luz Vera Cruz
rapidamente transformou-se num polo irradiador de energia elétrica para
diversas outras localidades serranas e mesmo para cidades mais distantes, tendo
sido, por vários meses, a única usina hidrelétrica a enviar uma corrente
constante para a Baixada Fluminense, em especial Belfort Roxo e cercanias. Além
disso, as atitudes mais comezinhas de seus dirigentes dia a dia comprovavam a
lisura de seus atos e a honestidade de seus propósitos, mostrando ser ela uma organização
que jamais fugia às responsabilidades de seu trabalho e que assumia possíveis
erros de percurso. Tanto isto é verdade que, em 1931, quando era presidida pelo
respeitável Dr. Raul Machado Bitencourt, a queda de um poste com sua respectiva
fiação, provocada por um forte temporal nas proximidades do bairro Cupido,
acabou por matar quatro das várias reses criadas pelo Hermano Durão no sítio da
família. Reclamada uma indenização pelo sitiante, a companhia de imediato se
pronunciou a respeito do incidente, depositando todo o valor referente à perda
dos animais uma semana apenas após a reivindicação imposta pela família
afetada.
IMAGEM: Montagem de novos geradores após a inundação
de 1945
Na próxima edição: Apogeu e Queda da Companhia Força
e Luz Vera Cruz - Final