Bonifácio Portella, farmacêutico, político e mecenas
Episódios Especiais do Passado de Miguel Pereira
01/12/2023
Historiador Sebastião Deister
Edição 477
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Apesar de várias realizações na área do comércio, das comunicações, da
saúde e da construção civil, a infraestrutura de Miguel Pereira ainda se mostrava
dolorosamente precária entre os anos quarenta e cinquenta. Não havia calçamento
em muitas de suas ruas, muitos esgotos corriam a céu aberto ou eram
simplesmente desviados para o córrego do Sacco, algumas doenças endêmicas vez
por outra grassavam pela cidade, ceifando algumas vidas jovens e valiosas, e o
abastecimento de gêneros de primeira necessidade dependia diretamente dos
trens.
É verdade que a região já podia contar com a energia elétrica fornecida
pela usina de Vera Cruz, mas o fornecimento era intermitente, de baixa
intensidade e em algumas ocasiões simplesmente desaparecia das casas, em geral
em consequência de fortes temporais que interceptavam o fluxo dos geradores de
Vera Cruz e derrubavam as frágeis linhas esticadas com muito sacrifício pelas
montanhas e matas.
Mesmo a captação de água promovida pelo Dr. Raul
Machado Bitencourt e por Alexandre Spino, Bruno Lucci e Geraldino Caetano da
Fraga mostrava-se insuficiente para a população, que por essa razão recorria a
poços artesianos abertos com enormes dificuldades pelos quintais de suas casas,
ou a alguma nascente mais farta e próxima do miolo da cidade, nas quais podia
diariamente encher suas latas e seus baldes.
Por incrível que possa parecer, até mesmo a simples
conexão entre os dois lados de Miguel Pereira - ou seja, a área ocupada pelos
trilhos e a outra parte onde se situava a igreja - só se mostrava possível
cobrindo-se o córrego do Sacco com troncos e tábuas improvisadas, tarefa aparentemente
trivial mas que frequentemente se tornava ingente e quase impossível em razão
das cheias provocadas pelas inclementes chuvas de verão. Tal obstáculo foi
eliminado apenas em 1936, quando as velhas e instáveis pinguelas de troncos
foram em definitivo substituídas por uma pequena ponte de cimento construída
por iniciativa de alguns comerciantes.
Algumas das urgências miguelenses foram prontamente
atacadas pelo prefeito Bonifácio de Macedo Portella. Com efeito, trazido pelas
múltiplas tarefas políticas que exercia em Vassouras, desembarcou em Miguel
Pereira, lá pelos anos trinta, um cidadão atencioso e alegre chamado Bonifácio
Portella que, em virtude da força do seu trabalho comunitário, deixaria gravado
em nossa cidade o peso do seu nome e o exemplo de sua notável cidadania.
Cortês, paciente e solidário com os menos afortunados e sensível aos problemas
de saúde e educação de uma população tão carente, o migrante vassourense
instalou na atual rua Machado Bitencourt sua novidadeira "Pharmácia Portella", prédio
que posteriormente abrigaria a Casa Aurora e hoje é ocupado por outra farmácia
chamada Droga Mais, ao lado da Caixa Econômica Federal.
Inteligente e perspicaz - não fora ele um político
de larga visão - Bonifácio Portella logo percebeu que naquela vila poderia
desempenhar dois papéis fundamentais: levar adiante a sua amada profissão de
farmacêutico e ajudar aquele povo simplório e carente. Caridoso e sempre
bem-humorado, Portella de imediato transformou-se num ponto de referência para
os moradores da serra, que nele encontravam sempre uma prosa agradável e um estimulante
conselho profissional. Pessoas adoentadas procuravam-no em busca de compressas,
emplastros, curativos, elixires ou analgésicos, muitas delas se espantando com
a coleção de garrafas, frascos, tubos contorcidos e vidrinhos escuros que se
alinhavam cuidadosamente pelas silenciosas e longas prateleiras da "Pharmácia".
Por outro lado, Bonifácio mantinha estreita amizade
com alguns médicos do local, como os doutores Osvaldo de Araújo Lima, Radamés
Marzullo e Antônio Ferreira do Amaral. Por vezes, o farmacêutico convocava-os à
farmácia para que eles providenciassem pequenas cirurgias, diagnósticos mais
precisos ou mesmo a suturação de alguns ferimentos mais sérios que seus
clientes insistiam em mostrar a ele e não aos médicos, tamanha era a medida de
confiança que ele despertava em todos os moradores.
Mesmo com tantas atividades em Miguel Pereira,
Bonifácio Portella não descuidava da política vassourense, visitando com frequência
os meios administrativos municipais daquela cidade e lá tentando obter outros
benefícios que pudesse transferir para nossa terra. Aproveitava, também, suas
eventuais viagens ao Rio de Janeiro para trazer dos laboratórios farmacêuticos
novos remédios para a população serrana. Cobrava por seus serviços quando era
possível, fingia não ouvir perguntas sobre o valor de um atendimento ao
perceber a pobreza do consulente e ensinava de bom grado o uso de ervas, raízes
e poções para aqueles que se queixavam de dores de cabeça, mal-estar estomacal,
dentes inflamados, garganta irritada, dor de ouvido, picadas de insetos, prisão
de ventre ou de outras mazelas típicas da roça.
Em algumas ocasiões, envergava seu indefectível
terno de linho claro, ajustava o colete distinto, punha o chapéu Panamá e,
apoiando-se em sua inseparável e bem torneada bengala - que portava mais por
uma questão de elegância que por necessidade - saía a visitar um doente que lhe
mandara um recado urgente.
Bonifácio Portella, contudo, não se restringia a
trabalhos sociais e profissionais em Miguel Pereira. A política estava em seu
sangue, tornando-se prefeito de Vassouras por dois períodos - de dezembro de
1935 a maio de 1936 e de agosto de 1936 a novembro de 1937 -, governos
municipais aproveitados para carrear recursos e benefícios para Miguel Pereira
e Governador Portela, como alargamento e calçamento de ruas, melhor
distribuição de postes e vias elétricas, colocação de manilhas nas principais
ruas dos dois distritos e canalização mais racional do córrego do Sacco para
evitar eventuais alagamentos no centro da cidade.
Ao lado dos amigos Geraldino Caetano da Fraga e
Major Ariovisto A. Rêgo, do empresário Newton Land e outros próceres locais,
Bonifácio logrou implantar em Miguel Pereira um posto da Companhia Telefônica
Brasileira, medida político-social que, além de estabelecer melhores
comunicações com o Rio de Janeiro, possibilitou ainda a oferta de emprego para
algumas senhoritas do lugar.
Esse importante acontecimento deu margem a outra
reivindicação por parte dos comerciantes e políticos miguelenses: o calçamento
da rua da Estação e do Largo do Machadinho. Afinal - ponderavam todos eles, com
razão - com o aumento da população, o movimento diário de trens transportando
inúmeros veranistas para a serra e o incremento do comércio daquela área, agora
ainda mais enriquecida com a inauguração da Telefônica, era inadmissível que o
coração de Miguel Pereira permanecesse com um aspecto tão pantanoso e
desanimador. Rendendo-se aos apelos de Geraldino, Ariovisto, professor
Lindemann, Ferreira Gomes, Juju, Zair Pragana e sua esposa (a professora
Jandira), de membros das famílias Wängler, Bernardes, Botelho Peralta, Nonno,
Pereira Soares e Machado Bitencourt - além de dezenas de moradores da cidade -
Bonifácio conseguiu então o calçamento para a rua da Estação, solenemente
inaugurado em outubro de 1937. Poucos anos depois, seria ela então batizada
como rua General Ferreira do Amaral, mantendo-se com tal designação até hoje.
Para Bonifácio, aquela foi sua última inauguração na
qualidade de prefeito de Vassouras, pois no mês seguinte deixaria seu cargo,
abandonando a política e mudando-se em definitivo para Miguel Pereira, vindo
residir em uma casa no centro da cidade, desaparecida para dar lugar ao
Shopping Flamboyant.
Nascido em 13 de maio de 1888, Bonifácio de Macedo
Portella contraiu seu primeiro matrimônio com D. Isabel de Azurara, tendo com
ela os filhos Zeno, Paulo, Diná e Rui. Enviuvando, casou-se então com D.
Iracema, com quem não teve filhos. Viveu seus últimos anos administrando sua
farmácia e convivendo com a família, com os amigos e com seus vários
admiradores. Feliz e realizado, faleceu no dia 18 de janeiro de 1950, quatro
meses antes de completar 62 anos.
Imagens:
Bonifácio junto à "Pharmacia Portella" e fachada do estabelecimento
Na próxima edição: Imigrantes em Miguel Pereira