O Carnaval não tem nada a ver com a confusão
Tumulto após show para 300 mil pessoas em Copacabana era caos anunciado, que foi ignorado pela Prefeitura do Rio
17/01/2020
Planeta Colabora
Edição 277
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Foto 1 - Multidão estimada em 300 mil na praia de Copacabana para show
do Bloco da Favorita: tumulto previsível e pancadaria no final. (Foto: Allan
Carvalho/AGIF/AFP)
Em 2018, o Bloco da Favorita levou mais de 500 mil pessoas à orla de
Copacabana no sábado de Carnaval: teve engarrafamento no trânsito, confusão nas
estações do metrô - que ficou parado por 40 minutos -, depredação de
equipamentos públicos, correria e confusão nas ruas. Moradores do bairro
aumentaram o tom das reclamações, que já vinham do ano interior, e a Prefeitura
e a Riotur decidiram que, pelos problemas de logística, os chamados megablocos
- com artistas e outras atrações - só desfilariam no Centro do Rio, o que
efetivamente ocorreu em 2019; com exceção da Favorita, que preferiu se
apresentar em São Paulo. Neste 2020, no primeiro dia do ano, a Riotur anunciou
uma "abertura do Carnaval" na orla de Copacabana com o Bloco da Favorita,
apenas 10 dias depois do Réveillon: tinha tudo para dar errado. E deu:
congestionamento, confusão no metrô, depredação. Teve ainda dispersão do público
na base de paulada e bomba de gás.
"O evento é inadequado em razão dos impactos urbanísticos gerados no
bairro predominantemente residencial, provocando caos urbano agravado pela
falta de antecedência para a articulação com os demais setores públicos, como
transporte e limpeza urbana, controle de tráfego e interdição de vias e de
áreas de estacionamento" - Liana Barros Cardozo, promotora em ação pedindo a suspensão do evento
do Bloco da Favorita
Apesar de eu ter citado a maior festa da cidade no parágrafo de
abertura, é importante logo dizer que o Carnaval não tem nada a ver com isso.
Como sabem os cariocas, o prefeito Marcelo Crivella tem deixado claro desde que
assumiu que odeia essa festa: recusou-se a entregar a chave da cidade ao Rei
Momo, cortou verbas das escolas de samba e dificultou a organização dos blocos
de rua. Talvez por conta do ano eleitoral, a Prefeitura apareceu com essa
infeliz ideia de abertura, com um evento para mais de 300 mil pessoas na praia
de Copacabana, apenas 10 dias depois do Réveillon.
Tinha tudo para dar errado e não sou eu quem estou dizendo. A promotora
Liana Barros Cardozo - da 1ª Promotoria
de Justiça de Tutela Coletiva de Defesa da Cidadania da Capital - entrou com
uma ação pedindo a suspensão do evento por considerar inadequado "em razão
dos impactos urbanísticos gerados no bairro predominantemente residencial,
provocando caos urbano agravado pela falta de antecedência para a articulação
com os demais setores públicos, como transporte e limpeza urbana, controle de
tráfego e interdição de vias e de áreas de estacionamento". Para a
promotora, a falta de planejamento colocava em risco a segurança pública e a
integridade física dos presentes. "Não se pode admitir que os entes
municipais e estaduais assumam a postura de realizar megaeventos sem o
planejamento adequado, sob pena de incidir novamente em práticas amadoras",
argumentava ação movida pelo MP, que não foi aceita pela Justiça.
"Criticar isso não é preconceito, não é morar no passado, não é ser
conservador, mas colocar as coisas no lugar que elas têm para que a barbárie
não seja o lugar comum. Nem tudo é carnaval e carnaval não é um 'tudo pode'" - Luiz Carlos Máximo, compositor
Vou repetir: o Carnaval não tem nada a ver com isso. O que houve em
Copacabana foi um show gratuito, com Preta Gil, Sandra de Sá, Tony Garrido, DJs
e MCs, atrações suficientes para mobilizar uma multidão. O santo nome do
Carnaval foi usado em vão: só uma minoria deve saber que foram eleitos o Rei
Momo e sua Rainha. Tinha razão a Polícia Militar para vetar a Favorita no
domingo; a lei determina que autorização para um evento dessa magnitude precisa
ser feita com 70 dias de antecedência. Mas a PM cedeu, a Justiça autorizou - e
a Riotur simplesmente esqueceu os problemas que a levaram a transferir os
megablocos para o Centro.
"Venho dizendo há tempos que uma ameaça tão forte quanto a do imaginário
neopentecostal de demonização do Carnaval e a flagrante demofobia das elites
brasileiras é a captura da rua pelo mercado e da festa pela lógica do evento,
que proporciona circulação de capital e só por isso se justifica. O fenômeno
dos megablocos se insere nessa lógica. O que se quer ali não é Carnaval, é
grana" - Luiz Antônio Simas, historiador
e professor
Foto 2 - Multidão na apresentação do Bloco da Favorita em Copacabana:
oposição dos moradores do bairro e do Ministério Público, alertando sobre transtornos,
não conseguiu impedir evento. (Foto: Fernando Maia/Riotur)