Vidas secas dos desertos brasileiros
Gilbués, no Piauí, lidera a lista dos núcleos de desertificação no Brasil; esse é um fenômeno provocado pela ação humana que já atinge 1.488 municípios, mas o problema, talvez irreversível, é ignorado pelo governo de Jair Bolsonaro
12/06/2020
Planeta Colabora
Edição 296
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(Texto e reportagem de Liana Melo) Zé
Capenga, como José Rodrigues dos Santos é mais conhecido pelos vizinhos, é um
dos moradores mais antigos do sertão de Gilbués, no sudoeste do Piauí. A
cidade, com pouco mais de 10 mil habitantes e distante 850 quilômetros de
Teresina, é uma das áreas mais severas dos seis núcleos de desertificação no
Brasil, que incluí ainda Irauçuba (Ceará), Seridó (Rio Grande do Norte),
Cabrobó (Pernambuco), Cariris Velho (Paraíba) e Sertão do São Francisco
(Bahia). Seu casebre fica em meio a uma terra devastada e que está praticamente
imprestável para a agricultura ? o que já era seco, ficou ainda mais
esturricado depois da estiagem implacável que se estendeu pelos últimos cinco
anos no Nordeste brasileiro. "O arroz, que era comum na região, deixou de
ser produzido", lamenta, contando que o inverno tem ficado cada vez mais curto.
Sem chuva, os moradores da vizinhança só colhem milho e mandioca, culturas mais
resistentes à seca. Aos 72 anos, dos quais os últimos 50 anos passou morando na
região, Zé Capenga é testemunha ocular do processo de degradação ambiental sem
precedentes que transformou o sertão de Gilbués num deserto em pleno Cerrado
piauiense.
Sem contar com a ajuda dos filhos e dos
netos, que partiram em retirada fugindo do inevitável ciclo da pobreza, que se
retroalimenta da seca na região, Zé Capenga é um dos 32 milhões de brasileiros
que resistem. Ele sobrevive num lugar inóspito, onde as áreas com grandes
manchas desnudas e presença ou não de cobertura vegetal rasteira são a regra e
não a exceção. Ele mora com a mulher e uma sobrinha - os vizinhos ajudam,
porque no deserto é impossível viver isolado ou sozinho. Os sinais claros de
erosão do solo em Gilbués e nos outros núcleos de desertificação levaram o
pesquisador Aldrin Pérez-Marin, do Instituto Nacional do Semiárido (Insa), a
afirmar que 85% do semiárido brasileiro está ficando desertificado e 9% já está
totalmente desertificado, num processo praticamente irreversível. A
desertificação atinge 1.488 municípios brasileiros e está espalhada por nove
estados do semiárido nordestino, além do Norte de Minas Gerais e Espírito
Santo. Pouco menos de dois anos depois da última delimitação do semiárido
brasileiro (ocorrida em novembro de 2017), a pressão continua para o mapa do
semiárido ser novamente reconfigurado, com o acréscimo de mais municípios do
norte capixaba.
Ainda que o Brasil seja um dos 192 países
signatários da Convenção das Nações Unidas de Combate à Desertificação (UNCCD,
na sigla em inglês), o tema perdeu força no Brasil de Jair Bolsonaro. Ninguém
do governo fala sobre o assunto, como se o problema tivesse sido resolvido.
Estamos chegando ao fim da Década para os Desertos e a Luta contra a
Desertificação (2010-2020), decretada pelas Nações Unidas (ONU), e o que era
seco ficou ainda mais seco. A desertificação de Gilbués, por exemplo, é parte de
um problema cuja dimensão é mundial. As áreas mais secas do mundo vêm
aumentando, levando a uma perda de 24 bilhões de toneladas de terra fértil no
planeta todos os anos, o que provoca, pelos cálculos das Nações Unidas (ONU),
uma redução do produto interno bruto (PIB) global de até 8% ao ano. Segundo
dados do Novo Atlas Mundial da Desertificação, cerca de 75% da área terrestre
do planeta já está degradada e mais 90% pode ser afetada até 2050. Globalmente,
uma área total com metade do tamanho da União Europeia, ou seja, 4,18 milhões
de km2, é degradada anualmente, ficando imprestável para a agricultura. A
África - onde dois terços das terras estão secas - e a Ásia são as regiões mais
afetadas no mundo, mas o Brasil também figura no mapa abaixo.
"A desertificação é um fenômeno antrópico causado
pelo ser humano e pelo seu modelo de desenvolvimento. Portanto, a
desertificação é um fenômeno provocado pelo homem" - Aldrin Pérez-Marin, pesquisador do
Instituto Nacional do Semiárido (Insa)
Pérez-Marin explica que "a desertificação
é um fenômeno antrópico causado pelo ser humano e pelo seu modelo de
desenvolvimento. Portanto, a desertificação é um fenômeno provocado pelo homem".
Pela definição clássica da ONU, o fenômeno só ocorre em regiões áridas,
semiáridas e subúmidas secas. Suas causas são variadas, mas, em Gilbués, a
mineração indiscriminada acelerou o processo de erosão associado ao
desmatamento, às queimadas ? 30% da matriz energética do Nordeste é alimentada
por lenha ? e ao pastoreio de caprinos e ovinos acima da capacidade de suporte
do ambiente.
Figurando entre os municípios de baixo Índice
de Desenvolvimento Humano (IDH) do estado, Gilbués carrega até hoje a fama de
guardar uma reserva de diamantes no seu subsolo. A extração desordenada teve
início por volta dos anos 1940 e, desde então, o processo de degradação do solo
vem acelerando, tendo chegado a um quadro devastador, com erosão em sulco.
Agripino Borges, por
exemplo, criou os filhos, comprou um terreno e construiu sua casa com o
dinheiro da venda das pedras de diamante que garimpou no rio Sossego. Aos 72
anos, ele ainda minera, mas conta com a ajuda de três garimpeiros no dia a dia
do trabalho ? ele recebe 25% do que o trio garimpa. Sem infraestrutura, os
quatro procuram diamantes com técnicas artesanais, usando panelas de metal para
"batear" o minério. Em casa, Borges guarda, numa bolsa de couro, o
equivalente a R$ 30 mil em pedras de diamante. Porém, a riqueza extraída do
subsolo de Gilbués não mudou o perfil socioeconômico do município: 64,1% da
população vive com até um salário mínimo e 1,6% dos moradores não têm nenhuma
renda, segundo o Censo Demográfico do IBGE de 2000. A elite local, aqueles que
ganham mais de 20 salários mínimos, representa 0,7%. Chega a 22,5% o percentual
da população sem instrução nenhuma ou com menos de um ano de estudo.
As áreas degradas no Piauí atingem 21,64% do
estado. Além de Gilbués, um total de 15 municípios estão nesta situação, o que
soma 7,8 mil quilômetros quadrados, ou seja, uma área cinco vezes maior que a
cidade de São Paulo. Na lista, está a cidade de São Gonçalo do Gurguéia,
distante cerca de 25 quilômetros de Gilbués. Lá, está em fase final de
instalação um parque solar de proporções gigantescas. Considerado o maior
parque solar da América do Sul, o projeto da Enel Group consumiu R$ 1,4 bilhão em
investimentos e terá uma capacidade instalada de 475 megawatts (MW). Assim como
o diamante, que atingiu seu apogeu nas décadas de 1950 e 1960, a geração de
energia solar na região vai aumentar ainda mais o fosso entre o topo e a base
da pirâmide social em Gilbués. E Zé Capenga vai continuar vivendo, de sol a
sol, sonhando com gotas de chuva para irrigar sua horta caseira e alimentar
suas 30 cabeças de gado.
*Esta reportagem foi uma das vencedoras da 1ª
Bolsa #Colabora
Foto 1 - Zé Capenga é um dos moradores mais
antigos da desértica Gilbués. (Foto: Márcio Pimenta)
Foto 2 - Além de um lugar inóspito, viver na
área rural de Gilbués é conviver cotidianamente com a solidão e o silêncio.
(Foto: Márcio Pimenta)
Foto 3 - Zé Capenga e seu inseparável
instrumento de trabalho, o facão. Ele vive da pequena roça, que só dá milho e
mandioca, e de 30 cabeças de gado. (Foto: Márcio Pimenta)
Foto 4 - Aos 72 anos, Agripino Borges ainda
garimpa o rio Sossego diariamente. (Foto: Márcio Pimenta)
Foto 5 - Fazenda solar em São Gonçalo do
Gurguéia: capacidade instalada de 475 megawatts no deserto do Cerrado. (Foto:
Márcio Pimenta)