Reserva do Tinguá no centro da polêmica sobre o desmonte dos órgãos ambientais
O MPF criticou a forma pouco democrática como está sendo executada a transferência da sede da Rebio
19/06/2020
Meio Ambiente
Edição 297
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Por jornalista Maurício
Thuswohl
Rio de Janeiro - Um dos maiores fragmentos contínuos
de Mata Atlântica existentes no Brasil, a Reserva Biológica do Tinguá,
patrimônio ecológico e econômico de Miguel Pereira e região, está no centro de
uma disputa que coloca em cantos opostos do ringue político o movimento
socioambientalista brasileiro e o governo federal. O motivo da briga é a
reforma no sistema de gestão das Unidades de Conservação brasileiras que vem
sendo executada pelo Ministério do Meio Ambiente. Para os ambientalistas, a
decisão de reunir UCs díspares e distantes umas das outras sob um mesmo
guarda-chuva administrativo enfraquecerá a conservação das unidades e faz parte
da tentativa de desmontagem das políticas ambientais do país levada a cabo pelo
governo de Jair Bolsonaro.
Neste contexto, o caso da Rebio Tinguá é emblemático.
Segundo o plano de reestruturação do Instituto Chico Mendes de Conservação da
Biodiversidade (ICMBio), órgão responsável pela gestão das UCs em todo o
Brasil, a sede da unidade, localizada desde sua fundação em Nova Iguaçu, será
transferida para Petrópolis. Desde o mês passado, a cidade serrana abriga a
sede do recém-criado Núcleo de Gestão Integrada (NGI) de Teresópolis, que
passou a centralizar também a gestão de outras quatro UCs: Parque Nacional da
Serra dos Órgãos, Área de Proteção Ambiental de Petrópolis, Área de Proteção
Ambiental de Guapimirim e Estação Ecológica Guanabara.
A Rebio Tinguá tornou-se símbolo de resistência depois
que a 2ª Vara Federal de Nova Iguaçu, provocada por uma Ação Civil Pública impetrada
pelo Ministério Público Federal, concedeu liminar determinando a suspensão da
portaria que integrava a gestão da unidade ao NGI de Teresópolis. A Justiça
determinou ainda que o órgão ambiental "assegure um debate plural, técnico e
amplo" sobre a questão, levando em conta "as implicações que essa
mudança teria para o meio ambiente".
Para o procurador Júlio Araújo Júnior, que encaminhou
a ação no MPF, a criação do NGI de Teresópolis é legalmente questionável: "Nos
moldes propostos, ela não contribui para a conservação da biodiversidade e
representa grande retrocesso na política de conservação do Rio de Janeiro".
A ação questiona a principal alegação do governo para justificar a mudança: "O
objetivo declarado consistia na suposta obtenção de ganhos em eficiência
gerencial e na otimização de recursos associados ao compartilhamento de
estruturas físicas e equipamentos. No entanto, os custos atuais para a
manutenção da sede da Rebio Tinguá são muito baixos e a unidade precisa de mais
investimentos. Além disso, existem cerca de R$ 20 milhões de recursos em
compensação ambiental que poderiam ser aplicados na estruturação da unidade".
Chefe da Rebio Tinguá até meados de maio, o biólogo
Leandro Travassos revela que "a perda da sede própria significa a extinção
de 53 pesquisas importantíssimas" de universidades como UFRJ, UFRRJ, Jardim
Botânico, UFMG e UERJ, entre outras. Ele ressalta a importância de se conhecer
e proteger a biodiversidade dentro da Rebio: "Ainda hoje estão sendo
descobertas e descritas novas espécies de aves, anfíbios e árvores. Note que
são espécies relativamente grandes, não estamos falando de insetos ou
micro-organismos. Todas as espécies são potencialmente importantes não apenas
para o ecossistema e suas teias de interação, mas também para a sociedade
humana, que pode ser beneficiada com a produção de novos fármacos, alimentos,
madeira, modelos tecnológicos, etc.", diz.
Biodiversidade
ameaçada
Além das pesquisas, a própria existência de inúmeras
espécies se encontrará ameaçada, afirma Travassos: "A falta de fiscalização
e de analistas do ICMBio se deslocando no território faz com que haja a
sensação de falta de proteção, de desleixo com a coisa pública. A destruição
das instituições é o que muitos estão esperando para poder agir livremente na invasão
de terras, caça e extração de palmito".
A Rebio Tinguá constitui uma área de Extrema
Importância Biológica, de acordo com os critérios da ONU. A reserva abriga mais
de 560 espécies arbóreas, 85 de mamíferos, 350 de aves e 34 de peixes, com
populações de espécies de grande porte como o puma, o queixada, o cateto, o
veado mateiro e a águia-cinzenta, entre outras: "Todas são espécies
ameaçadas por caça. Além disso, a Rebio abriga pelo menos 84 espécies de
vertebrados e plantas ameaçadas de extinção. Tudo isso são resultados de
pesquisas científicas, são os pesquisadores que traduzem o que é essa riqueza
para o entendimento da sociedade", diz Travassos.
O MPF criticou a forma pouco democrática como está
sendo executada a transferência da sede da Rebio: "Em vez de buscar o debate
técnico e amplo sobre o tema, o ICMBio preferiu, a toque de caixa, concretizar
a medida sob o argumento da eficiência. No entanto, a implantação do NGI de
Teresópolis acarretará, na verdade, o afastamento da especialização atualmente
existente", diz o procurador Araújo Júnior.
Travassos também critica a falta de democracia e faz
uma proposta: "O processo de discussão da gestão da Rebio passa
invariavelmente pela sociedade civil, organizada ou não. Foi por causa dela que
a Rebio Tinguá foi criada e hoje percebo que talvez seja ela que devesse fazer
a gestão ou a cogestão da UC. A sociedade deveria propor um plano de cogestão
ao ICMBio, e a implantação desse plano deveria ser bancada por empresas como
Petrobrás, Furnas, Cedae, Concer e NTS, que possuem empreendimentos no interior
da UC".
Miguel
Pereira
Criada em maio de 1989 pelo Decreto Federal 97.780, a
Rebio Tinguá tem 24,8 mil hectares distribuídos pelos municípios de Miguel
Pereira, Petrópolis, Duque de Caxias e Nova Iguaçu. Sua importância ambiental e
econômica para Miguel Pereira e região é grande, diz Travassos, e o município
poderia aproveitara discussão sobre a transferência da sede para fortalecer
suas ações no entorno da UC: "Miguel Pereira ainda tem aproximadamente 8 mil
hectares de florestas em bom estado de conservação contíguas a Rebio. O
município deveria incentivar a proteção deste remanescente e estimular a
revegetação do município", diz.
As consequências, diz o biólogo, seriam imediatas: "O
aumento de áreas protegidas poderia aumentar a arrecadação de ICMS ecológico,
estimularia o turismo, que deve ser bem planejado e regulado, e a difusão de
tecnologias de produção de madeiras nativas. Com racionalidade, a natureza
poderia ser utilizada direta e indiretamente para melhorar a qualidade de vida
nos municípios, mas os governos acham que apenas obras e terras arrasadas
produzem valores econômicos", lamenta.
Travassos acrescenta que a Rebio Tinguá é a grande
produtora de água da região Centro-Sul do Rio: "Sua importância extrapola as
fronteiras de Miguel Pereira. Além do conforto climático para o município, a
Rebio contribui para a recarga hídrica do Rio Santana, que é um dos principais
contribuintes do Rio Guandu, principalmente, porque suas águas ainda não estão
tão poluídas quanto os rios da Baixada. Todavia a ocupação das suas margens é
extremamente preocupante", diz.
"O Governo do Estado e a Prefeitura de Miguel Pereira
administram duas Áreas de Proteção Ambiental na região do Rio Santana, mas não
sei porque não tomam medidas enérgicas contra a degradação deste importante
rio. Infelizmente, as APAs parecem se concentrar apenas no licenciamento de
grandes empreendimentos, não observando a degradação de formiguinha que ocorre
no dia-a-dia", finaliza o ex-chefe da Rebio.