Como se tratava o estupro em 1833
O cabra Manoel Duda, pelo malificio que fez à mulher do Xico Bento, a ser CAPADO, capadura que deverá ser feita a MACETE. A execução desta peça deverá ser feita na cadeia desta Villa. Nomeio carrasco o carcereiro.
23/10/2020
Historiador Sebastião Deister
Edição 315
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Diariamente,
os noticiários divulgam casos absurdos de estupro. Dentre aqueles publicados
pela mídia, apenas uma mísera porcentagem chega ao nosso conhecimento. No
Brasil, segundo dados do IPEA, 0,26% da população sofre violência sexual,
indicando, anualmente, 527 mil ocorrências, entre tentativas e casos
consumados. No ano de 2013, o Anuário do Fórum Brasileiro de Segurança Pública
(FBSP) apontou que, só em 2012, foram notificados 50.617 casos de estupro no
Brasil, porém a taxa de notificação à polícia foi estimada em apenas 19,1%,
segundo o IPEA, com um consequente número baixíssimo de condenações.
Existem
diversos motivos para as denúncias não serem realizadas, todos relacionados com
o fato de que, socialmente, existe a imputação da culpa do ato à própria
vítima, ao mesmo tempo em que há indiferença em relação à violência do
estuprador. Claro está que tal negligência das autoridades torna a mulher uma
vítima física e psicológica da sociedade machista que impera no Brasil.
Como
bem disse o filósofo alemão Friedrich Engels, a violência de gênero é um
reflexo direto da maior derrota histórica do sexo feminino, quando, ao serem
retiradas da esfera do trabalho produtivo para serem encarceradas dentro de
casa, as mulheres passaram a servir como reprodutoras de herdeiros para os
homens que então se arrogavam o direito de deter os meios de produção.
Por
outro lado, um enorme contingente de mulheres pobres elegeu a prostituição como
meio de sobrevivência, principalmente pelo fato de que o advento da propriedade privada celebrar a estruturação
do mundo patriarcal e reduzir a humanidade das mulheres a meros objetos de
prazer, parte delas servindo tão-somente a procriar herdeiros mantendo, assim,
o status financeiro e familiar, com outra
parte vivendo apenas para satisfazer a luxúria e a lascívia dos homens.
Quando
lemos este tipo de explicação, parece que tudo aconteceu de forma pacífica, mas
não foi bem assim. Sabemos que houve resistência por parte das mulheres. Antes
livres, as mulheres liberais e profissionais possuíam liberdade para exercer
sua sexualidade, trabalhavam na esfera produtiva em pé de igualdade e
qualificação com os homens, detendo o mesmo respeito pela sociedade... mas, de
repente, passaram a ser trancafiadas dentro do lar apenas para terem filhos e
servirem como domésticas sem salários, sem direitos e sem valor. Desde tempos
imemoriais, foi com violência que os homens impuseram falsas ideias sociais
para garantirem seu suposto direito de submeterem suas companheiras aos seus
desígnios e seus aos desejos machistas disfarçados de superioridade de gênero,
valendo-se da ideologia absurda da condição subalterna da mulher, garantindo
assim as correntes emocionais e financeiras que as acorrentam ao seu lado.
Em
nosso país, entretanto, em eras passadas não era aceito passivamente o
relacionamento de violência do homem contra a mulher indefesa. No Brasil
colonial, leis rígidas - e, diga-se de passagem, violentas e cruéis - impunham
ao agressor punições, castigos e sentenças condenatórias irreversíveis e sem
direito qualquer tipo de apelação, da mesma maneira como se fazia no Vale do
Paraíba.
Leia,
a seguir, uma decisão judicial data de outubro de 1833 proferida na Província
de Sergipe. O texto está reproduzido "Ipsis
Litteris, Ipsis Verbis", isto é, na linguagem portuguesa arcaica do século
XIX.
Província de Sergipe
O adjunto de Promotor Público, representando
contra o cabra Manoel Duda, porque no dia 11 do mês de Nossa Senhora de
Sant'Anna quando a mulher do Xico Bento ia para a fonte, já perto dela, o
supracitado cabra que estava de em uma moita de mato, sahiu de supetão e fez
proposta a dita mulher, por quem queria para coisa que não se pode trazer a
lume, e como ella se recuzasse, o dito cabra abrafolou-se¹ dela, deitou-a no
chão, deixando as encomendas dela de fora e ao Deus dará. Elle não conseguiu
matrimonio porque ella gritou e veio em amparo dela Nocreto Correia e Norberto
Barbosa, que prenderam o cujo em flagrante. Dizem as leises que duas
testemunhas que assistam a qualquer naufragio do sucesso faz prova.
Assim Considero
QUE o cabra Manoel Duda agrediu a mulher de
Xico Bento para conxambrar² com ella e fazer chumbregâncias³, coisas que só
marido della competia conxambrar, porque casados pelo regime da Santa Igreja Cathólica
Romana;
QUE o cabra Manoel Duda é um suplicante⁶
debochado que nunca soube respeitar as famílias de suas vizinhas, tanto que
quis também fazer conxambranas com a Quitéria e Clarinha, moças donzellas;
QUE Manoel Duda é um sujeito perigoso e que
não tiver uma coisa que atenue a perigança⁴ delle, amanhan está metendo medo
até nos homens.
Condeno
O cabra Manoel Duda, pelo malificio que fez à
mulher do Xico Bento, a ser CAPADO, capadura que deverá ser feita a MACETE⁵. A
execução desta peça deverá ser feita na cadeia desta Villa.
Nomeio carrasco o carcereiro.
Cumpra-se e apregue-se editais nos lugares públicos.
Manoel Fernandes dos Santos
Juiz de Direito da Vila de Porto da Folha de
Sergipe, 15 de outubro de 1833
Para melhor entendimento do leitor, seguem algumas definições dos termos
de época. A gravura mostra o vestuário de um juiz do século XIX.
¹ABRAFOLAR-SE - Surpreender com violência, ou
atirar-se repentinamente sobre outra pessoa tentando imobilizá-la.
²CONXAMBRAR - Fazer sexo, copular.
³CHUMBREG NCIAS - atos indecentes praticados
por homens violentadores. Bolinagem e tentativas de fazer sexo não permitido.
No Nordeste, principalmente em Alagoas, existe o vocábulo "xumbregar", herança
direta do português arcaico do século XIX.
⁴PERIGANÇA - Termo usado para designar o
pênis, normalmente usado na época colonial para se referir a um estuprador ou
homem viciado em sexo.
⁵MACETA - (Vide foto) Espécie de martelo achatado.
Designa também as baquetas de extremidades arredondadas e espessas usadas para
tocar os bumbos de bandas musicais. Era utilizada para esmagar o pênis do
estuprador.
⁶SUPLICANTE - No caso, refere-se ao promotor
que solicitou (suplicou) ao juiz o julgamento do caso.