Capítulo 3 - Os Primórdios
A Trajetória Histórica do Município de Miguel Pereira
20/08/2021
Historiador Sebastião Deister
Edição 359
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Quando propomos uma volta no tempo à procura de um
ponto de partida para o estudo das origens da cidade de Miguel Pereira - e, por
extensão, como se fixaram na Serra do Couto as raízes do município do mesmo
nome - duas questões fundamentais e instigantes apresentam-se de imediato a
qualquer pesquisador: quando e onde, de fato, nasceu nossa cidade?
Em primeiro lugar, precisamos levar em consideração
que o atual território miguelense, à época de suas primeiras ocupações humanas,
pertencia a um município de vasta extensão geográfica administrado por
Vassouras, cujos domínios estendiam-se por Santa Cruz de Mendes, Paty do
Alferes, Sacra Família do Caminho Novo do Tinguá, São Sebastião dos Ferreiros,
Massambará, parte da vertente do Tinguá que se dobra para a antiga Vila de
Iguassú (hoje Nova Iguaçu) e para algumas áreas da baixada do Rio Santana que
tocam a localidade de Japeri (então conhecido como Povoado de Belém), atingindo
para Leste os limites da Freguesia de São Pedro e São Paulo de Paraíba do Sul e
para Oeste a região de Barra do Piraí.
Devemos ressaltar que o povoado de Barreiros - o
embrião de Miguel Pereira - não aflorou exatamente onde hoje se localiza a cidade.
De fato, os distritos, bairros e logradouros do município atual tiveram suas
origens na pequena localidade de Vera Cruz. Foi lá, em função dos trabalhos
desenvolvidos pela família Werneck na pioneira Fazenda de Nossa Senhora da
Piedade de Vera Cruz, que a semente de Barreiros realmente
germinou para formar a Vila da Estiva e, posteriormente, a cidade de Miguel
Pereira. De fato, a partir da Piedade (hoje Santa Cecília) os Werneck subiram
as colinas para descortinar o topo da Serra do Couto, pavimentando, com seu
pioneirismo, o caminho que proporcionaria a chegada de diversos outros
povoadores ao Tinguá. Com efeito, Vera Cruz foi o alicerce sobre o qual se
assentou um pequeno povoado que, décadas depois, iria se transmutar em Miguel
Pereira.
Diferentemente de Paty e Vassouras, no entanto,
Miguel Pereira atravessou uma época inicial de colonização e o Período Imperial
subsequente sem sofrer influências mais expressivas por parte dos cafeicultores
e fazendeiros que dominavam aquelas freguesias rurais. Barreiros, anos depois
rebatizado como Estiva, acompanhou, à certa distância, o desenvolvimento de
vilas circunvizinhas sem depender da forte ascendência imposta pelos barões do
café que tudo administravam pelas colinas. A estrutura arquitetônica original
do nosso povoado sempre apresentou estilos e conceitos próprios e
dessemelhantes em relação àquelas observadas nas construções implantadas em
Paty do Alferes e Vassouras. Por outro lado, recebendo um sólido impulso
fornecido pela ferrovia nos últimos anos do século XIX, a Estiva e Governador
Portela adquiriram contornos mais modestos, funcionais e arejados em suas casas
e ruas, obedecendo à necessidade de erguer moradias e prédios comerciais mais
simples e baratos, com isso fugindo dos custos pesados determinados pela
edificação de imensas fazendas de café que até então pontilhavam todo o Sul
Fluminense. Embora distanciadas entre si por apenas sete quilômetros, Paty do
Alferes e Miguel Pereira até hoje exibem uma considerável disparidade em seu
estilo de vida e em suas atividades comerciais, com a primeira ainda
conservando parte da herança legada pelo período agropecuário estabelecido com
sucesso pelos barões do café, e com a segunda se prevalecendo do comércio e do
turismo introduzidos pelos seus primeiros moradores e por múltiplos imigrantes
que aqui desembarcaram nas primeiras décadas do século XX cheios de ânimo e
prenhes de esperança.
Quando se descobre que, ao longo das centúrias XIX e
XX, dezenas de belas fazendas alcançavam admirável apogeu produtivo pelo Vale
do Paraíba do Sul, sustentando o fausto social e econômico advindo da cultura
do café em terras patienses e vassourenses, e que na área de Barreiros não
havia propriedades tão ricas ou pelo menos mais conhecidas, outra pergunta
surge de imediato: por que os inteligentes e poderosos latifundiários daquela
época não valorizaram o vale fértil e ensolarado de Barreiros, preferindo
erguer chácaras e sítios em áreas mais inóspitas e de difícil acesso, como Vera
Cruz e Marcos da Costa, ou até mesmo nos sinuosos enclaves das montanhas que conduzem
ao Lago das Lontras, nas faldas das serranias do Tinguá?
O que todas as pesquisas mostram é que os homens de
então trabalhavam com toda a praticidade possível e com uma lógica
perfeitamente explicável nos tempos atuais. Ora, como vários estudos
documentais e de campo demonstram, as estradas que conduziam para a Corte do
Rio de Janeiro (Caminho Novo de Minas, Variante
do Proença, Caminho do Azevedo, Estrada do Comércio e Estrada da Polícia, entre outras) cortavam as cordilheiras a partir de
Paraíba do Sul, Paty do Alferes, Sacra Família, Vassouras e Valença para
penetrar pelas matas do Tinguá e daí descer para os portos da Estrela, do Pilar
e de Iguassú, de onde, enfim, conectavam-se por
via marítima ou terrestre com o Rio de Janeiro. Portanto, os primeiros grandes
exploradores de nossas montanhas buscaram se estabelecer às margens de tais
caminhos, e não obstante as múltiplas dificuldades daquelas áreas perigosas e
desconhecidas, onde grotões sublimados por uma densa mata de súbito tragavam um
tropeiro desatento e animais estranhos e assustadores lançavam pelos bosques
sombreados seu uivo de desafio, os primevos fundadores de distantes logradouros
como Facão, Vale das Princesas, Marcos da Costa, Piedade, Monte Líbano, Alto do
Catete, Vila Suzana e Lontras jamais poderiam imaginar que o seu árduo trabalho
de exploração de terras pudesse um dia dar origem a cidades tão prósperas
quanto Miguel Pereira, Governador Portela e Paty do Alferes.
Dentro dessa linha de raciocínio, torna-se um pouco
leviano e mesmo temerário afirmar que aqueles fantásticos homens tivessem
deliberadamente negligenciado a potencialidade agrícola das várzeas
atravessadas pelo córrego posteriormente denominado riacho do Sacco. Na
realidade, eles tão-somente procuravam uma forma rápida e econômica de se
comunicar com os centros urbanos e administrativos mais desenvolvidos da época,
e isto apenas seria possível se suas propriedades estivessem alocadas
exatamente junto às estradas que para lá seguiam.
Cumpre lembrar que as glebas do povoado de Barreiros
situavam-se a meio caminho entre Paty do Alferes, Sacra Família do Tinguá, São
Sebastião dos Ferreiros e Vassouras. Embora o bom senso indicasse seu uso pelas
frequentes caravanas que cruzavam as colinas, isso na prática não acontecia. De
fato, o trânsito verificado nos anos iniciais do século XIX era bem mais
intenso pela área de Vera Cruz, e por conseguinte o vale do córrego do Sacco
permaneceu por muito tempo como uma precária e lamacenta via de passagem em
cujo solo cultivável, décadas depois, surgiriam algumas importantes fazendas
como Retiro, Pantanal, Sacco, Conceição, Estiva e, bem mais tarde, a fazenda do
barão de Javary, em contraposição a propriedades da grandeza histórica
ostentada por Monte Alegre, Santana das Palmeiras, Monte Líbano, Freguesia,
Maravilha, Secretário, São Fernando, Oriente, Guaritá, Pau Grande e tantas e
tantas outras maravilhas espraiadas pela Serra, desde os rincões de Nossa
Senhora da Glória de Valença até os limites do Sertão de Paraíba do Sul. De
qualquer forma, aqui e ali a esplanada irrigada pelo Córrego do Sacco começou a
receber casinholas e pequenos núcleos comerciais de subsistência, cujo
agrupamento ainda se fez mais notável após o pioneiro comerciante Antônio de
Silva Machado, o Machadinho, dar partida à construção do primeiro templo
católico do lugar consagrado a Santo Antônio, com isso agregando, em torno da
capela, uma humilde, porém entusiasmada população que, por fim, transfiguraria Barreiros
em Vila da Estiva.
Foto Abertura da rua Coronel Júlio Pita - década de 30
Na próxima edição: O
Córrego do Sacco e o Aparecimento de Barreiros