4º Capítulo - O Córrego do Sacco s o Aparecimento de Barreiros

A Trajetória Histórica do Município de Miguel Pereira

 27/08/2021     Historiador Sebastião Deister      Edição 360
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O vale onde hoje repousa Miguel Pereira nada mais era do que um simples agregado de casebres no primeiro quartel* de 1800, porém oferecia um marco de orientação fundamental para as caravanas da época: o córrego do Sacco, nascido no lago de Javary. A princípio, lembremos que o fundador da Fazenda da Piedade de Vera Cruz - Manoel de Azevedo Matos (1699-1788) - deixara para o filho Manuel de Azevedo Ramos a Sesmaria do Sacco (hoje Hotel Fazenda Javary), cujas terras alcançavam parte de Barão de Javary e Miguel Pereira. Entretanto, duas dúvidas históricas ainda permanecem: por que o nome Sacco e qual referência foi assim estabelecida em primeiro lugar: a sesmaria pioneira, a fazenda posterior ou o córrego?

Podemos levantar nos dias atuais somente um exercício teórico. Acreditamos que o riacho tenha sido o primeiro ponto de referência a receber tal designação, pelo mero fato de ser um acidente geográfico existente desde os tempos de criação geológica da região serrana. Por razões desconhecidas, mas com certeza muito pessoais, Manuel de Azevedo Ramos deve ter simpatizado com tal designação, transpondo-a logo para a sua sesmaria, essa bem mais antiga do que a fazenda que nasceria nas proximidades daquele modesto ribeirão. Contudo, a origem da palavra e o seu uso tão assíduo na serra continuarão ignorados, uma vez que os fazendeiros serranos em geral titulavam suas propriedades em função dos primeiros nomes dos seus fundadores, utilizavam os nomes de santos da Igreja Católica, ou então batizavam as propriedades valendo-se do gosto pessoal de suas famílias. Dentro desta linha de raciocínio, a denominação Sacco fugiria à nossa compreensão, a não ser que Manuel se tenha valido de um costume mineiro da época. Sabe-se, com grande grau de certeza, que em Minas era comum batizar como "sacco" qualquer extensão de planície que fosse cercada por matas ainda virgens, assim como em Goiás até hoje se usa o mesmo vocábulo para designar um arco de círculo descrito por um rio qualquer. Como Manoel de Azevedo Matos viera de Barbacena e sua sesmaria estivesse envolvida por largas extensões de bosques marginadas pelo rio Santana, podemos deixar em aberto esta discussão: o termo Sacco foi lançado pela família de Manuel de Azevedo Ramos a partir de 1789 para qualificar o pequeno ribeirão encontrado junto ao lago, e a reboque de tal decisão sua ampla sesmaria foi assim denominada tempos depois.

Provavelmente, acompanhando o curso deste riacho os viajantes de então alcançavam Paty sem maiores sobressaltos ou extravios. Da mesma maneira, podiam eles desviar-se para oeste e atingir o Lago de Javary para dali tomar o caminho que, atravessando o atual território de Portela, levava-os diretamente à Freguesia de Sacra Família do Caminho Novo do Tinguá. A propósito, no topo da montanha (chamada Serra do Couto), onde hoje temos o Distrito de Governador Portela, estabeleceu-se, no período de ocupação da Serra, uma importante estação de mudas de cavalos, paragem conhecida como rancho de tropeiros, destinada tanto ao repouso dos viajantes quanto à troca de montarias antes da conclusão de qualquer jornada rumo à localidade de Sacra Família à busca da Estrada da Polícia e, daí, diretamente a Vassouras.

É mais do que provável que ali, no cume da Serra do Couto, também tenha sido construída uma das importantes estivas da região. Com a construção subsequente de choupanas e casebres mais firmes pelas proximidades dessas travessias rudimentares, o termo estiva passou a qualificar os pontos de mudas de cavalos e logo, consagrado pelo uso, veio designar os povoados que deram origem a Portela e Miguel Pereira.

Especialmente na atual Miguel Pereira, duas denominações ganharam uma imediata aceitação junto aos seus primeiros moradores: Barreiros e Estiva, ambos, por sinal, bem adequados às características topográficas e históricas de nossa terra.

Pesquisas de campo levadas a efeito nos caminhos do Tinguá indicam que, antes da abertura de algumas estradas de melhor qualidade, o tráfego das caravanas pela nossa região deva ter sido de fato bastante dificultado pela singular e agressiva topografia do lugar. Em locais específicos - como o atual bairro Pantanal e parte do centro da cidade onde agora se localiza o fórum do município - as condições das viagens por certo se mostravam terrivelmente precárias e traiçoeiras para as mulas carregadas de preciosos produtos da lavoura e outros haveres. Afinal, tudo contribuía para que assim fosse: a inclemência e a intensidade das chuvas de verão, o transbordamento do riacho que corta tal área e o tipo de latossolo avermelhado que, com alta incidência de argila em sua composição, tende a se transformar em uma lama pegajosa e espessa com extrema facilidade. Por conseguinte, não surpreende o fato de os primevos ocupantes do nosso território terem batizado como "Povoado dos Barreiros" a várzea que precisavam ultrapassar quando de suas jornadas entre Paty do Alferes e Vassouras.

Há razões para crer que por muitas décadas o lugar tenha sido chamado Barreiros tanto pelos seus primeiros posseiros quanto pelos tropeiros que por ali transitavam. Longe de ser pejorativo, o termo indicava, a rigor, as condições ambientais do lugar. Todavia, nos últimos anos da centúria XIX tal titulação foi espontaneamente abandonada e substituída por Estiva, quando esse processo de cruzar lodaçais passou a ser uma técnica utilizada por moradores e viandantes. Assim, o vale de Barreiros aos poucos passou a chamar a atenção dos proprietários mais abastados da região serrana pela sua importância estratégica na conexão Paty-Vassouras. Sendo um ponto de passagem obrigatório entre tantos logradouros que brotavam pelas colinas, cedo ou tarde aquela área fecunda e tranquila despertaria o interesse de fazendeiros que procuravam pela região terras mais férteis e bem irrigadas para levantar suas novas propriedades.

O Povoado de Barreiros não foi fundado por alguém em especial e nem mesmo surgiu em função de Alvarás Reais, como aconteceu com Sacra Família, Vassouras e Paty do Alferes, o que nos impede de determinar uma data exata para o seu nascimento. No entanto, após a constatação das qualidades ímpares de seu clima, das facilidades que oferecia em relação à passagem para Vassouras e da fertilidade do seu solo, o pequeno e até então esquecido arraial mudou de nome e ganhou um impulso considerável a partir da implantação de algumas aconchegantes fazendas em sua periferia, salto social e demográfico ainda mais impulsionado após o advento da Estrada de Ferro que cobriu, com rapidez e modernismo, todo o território da nascente Vila da Estiva.

 

Foto Casa da Estiva em 1921


*os primeiros 25 anos de um século

 

Na próxima edição: A Fazenda da Piedade e Inácio de Souza Werneck