Capítulo 19 - Dr. Francisco Portela e a ferrovia no Tinguá

A Trajetória Histórica do Município de Miguel Pereira

 10/12/2021     Historiador Sebastião Deister      Edição 375
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Em 1882, o Governo da Província do Rio de Janeiro assinava com os engenheiros Paulo de Frontin, Henrique Hargreaves, Luiz Raphael Vieira Souto e Francisco Bicalho um contrato destinado à construção de uma via férrea que ligasse a localidade de Belém (atual Japeri) a Paraíba do Sul, com os trilhos em questão cruzando o vale do rio Santana e atravessando a Vila de Paty do Alferes. Daí, o leito ferroviário devia seguir para Arcozelo, Avelar e Barão de Werneck para então estabelecer conexão com Paraíba do Sul, Três Rios e Porto Novo do Cunha, criando-se, assim, a chamada Linha Auxiliar, cujos serviços desafogariam o trecho de Campos dos Goytacases.

Sob as ordens do próprio Imperador D. Pedro II, todos os planos de trabalho foram rapidamente concluídos. Tanto Sua Majestade quanto os engenheiros contratados estavam perfeitamente cientes da importância da ferrovia para aquela área serrana até então negligenciada, e por essa razão o Governo da Província jogou todos os recursos possíveis em sua conclusão, e em tempo relativamente curto a Linha Auxiliar mostrava-se pronta para receber o tráfego ferroviário entre o Rio de Janeiro e Minas Gerais pela área do Tinguá.

Um dos mais entusiasmados incentivadores de tal empreendimento foi Francisco Portela, o primeiro governador do Estado do Rio de Janeiro no Período Republicano, logo após esta unidade da federação despir-se da designação "Província" para ser conhecida como "Estado".

Nascido no Piauí em 1833, Francisco veio bem jovem para o Rio de Janeiro a fim de estudar na Faculdade Nacional de Medicina. Uma vez formado, envolveu-se com a fervilhante política antimonarquista da época, tendo inclusive participado de grupos que pregavam abertamente a Proclamação da República, razão pela qual se tornou um dos mais requisitados confidentes do Marechal Deodoro da Fonseca.

Clinicando e fazendo política, lentamente Portela foi impondo seu nome nos meios administrativos públicos da capital e com habilidade e muita simpatia acabou por se converter em íntimo amigo e colaborador dos poderosos deputados e militares de então. Com apenas 56 anos, dias depois de celebrar a tão sonhada Proclamação da República, foi indicado para o cargo de Governador do Estado do Rio, e valendo-se dessa prestigiosa autoridade tratou de acelerar as obras de construção da Linha Auxiliar, vistas por ele como uma obra fundamental para a integração social, administrativa e política do Rio de Janeiro.

Além de solidário a Deodoro e a despeito de ser um homem competente e dedicado em seus afazeres, Francisco Portela conheceu, de forma bem desagradável, o outro lado da vida política quando precisou enfrentar, ao lado do seu protetor, o golpe militar de 3 de novembro de 1891. Após o infrutífero contragolpe do dia 23 do mesmo mês, viu-se repentinamente deposto de seu cargo, mas em função dos relevantes serviços prestados como Governador, Francisco Portela foi homenageado pela direção da Estrada de Ferro Melhoramentos do Brasil - tempos depois rebatizada como Estrada de Ferro D. Pedro II - com a colocação do seu título e do seu nome em uma das mais importantes estações do alto da Serra do Couto: Governador Portela, hoje o 2º Distrito do Município de Miguel Pereira.

O advento da via férrea, tão estimulado por Portela, injetou no povoado de Barreiros - a partir daquela época rebatizado como Estiva - novos e amplos recursos financeiros e muitas possibilidades de trabalho até ali negados à sua reduzida população. Construindo estações de embarque e casas para seus numerosos funcionários às margens dos trilhos, a Estrada de Ferro propiciou o crescimento de inúmeros arraiais que aleatoriamente espalhavam-se pela Serra e, por via de consequência, muito contribuiu para aumento demográfico de todas as vilas por onde passava, além de alardear, no Rio de Janeiro, as delícias do clima e a altivez e beleza das montanhas que resguardavam o tranquilo vale do rio Santana.

É óbvio que os mais abastados proprietários de terras em Barreiros e Paty do Alferes não permaneceram alheios àquele notável surto de prosperidade. Atilados e perspicazes, notaram de pronto que deviam se adaptar aos novos tempos que sopravam pela Serra e que uma nova modalidade de vida e trabalho, diversa de tudo quanto conheciam e ainda mais ágil e qualificada, começava a se enraizar pelas colinas para substituir a já falida agricultura representada pelo velho café. De fato, de há muito o cultivo dessa preciosa rubiácea deixara de ser a mola-mestra da economia das fazendas da região serrana. Assolados por pragas invencíveis e desprovidos da competente mão-de-obra do escravo que se fora com as brisas da Abolição, os ex-poderosos latifundiários acompanharam com tristeza, perplexidade e impotência a derrocada de suas vastas plantações. Mesmo substituindo o outrora rico e viçoso café por outras culturas de subsistência - como o milho, a mandioca, a laranja, a banana, o feijão e a batata, entre outras - eles não vislumbravam nesse estafante trabalho condições de reverter o terrível quadro de falência de suas amadas terras, e sabiamente passaram a apostar tudo em dois novos promissores tipos de atividade: a pecuária e o comércio em geral.

A ferrovia, naturalmente, também significou para Paty do Alferes a redenção dos seus problemas mais urgentes, tendo contribuído para o seu desenvolvimento e a sua modernização, pois através dos trens que por ali circulavam diariamente os produtores patienses e avelarenses iam buscar nas estações os fertilizantes mais eficientes encomendados no Rio de Janeiro ou as máquinas e demais equipamentos capazes de acelerar seu trabalho e melhorar os produtos de suas plantações. Em sentido inverso, os comboios levavam para a capital e outras cidades os excedentes de seus cultivos, e com isso mantinha-se, em patamares seguros, o nível de capital de giro necessário à manutenção dos sítios de produção agropecuária espraiados pela centenária Freguesia de Paty.

Já a Estiva e Governador Portela converteram a Estrada de Ferro no grande mote de seu progresso. Sendo povoados pobres que jamais tinham dependido das grandes fazendas de café para seu sustento diário, até o auspicioso período dos trens ambos sobreviviam quase que unicamente em função das eventuais benesses dos ricos senhores que administravam três ou quatro propriedades mais afortunadas na área banhada pelo Ribeirão do Sacco, os quais ofereciam emprego a uma ou duas centenas de almas que habitavam aquelas glebas pouco frequentadas. Assim, tanto a Estiva quanto Portela divisaram na chegada da ferrovia o verdadeiro símbolo de sua independência social e econômica.