A Rodovia para Arcádia - Parte 1

Trajetória Política e Social de Miguel Pereira

 22/07/2022     Historiador Sebastião Deister      Edição 407
Compartilhe:       

Paralelamente aos acontecimentos verificados em Miguel Pereira após emancipação, a Vila de Governador Portela exultava com o crescimento da ferrovia e acompanhava, com atenção e satisfação, o pleno desenvolvimento de seu centro comercial. Com o 9º Depósito de Manutenção da Estrada de Ferro concluído e sua Seção de Reflorestamento em franca atividade, dezenas de outros ferroviários recém-chegados ao lugar animaram-se a erguer suas casas nas imediações da estação, criando naquela área um expressivo núcleo populacional. Outros, mais arrojados, deram início à implantação de vários bairros pela periferia do povoado, batizando-os de Roseiral, Futurista e Rio D´Ouro, este último abrigando parte da antiga estrada de ligação de Portela com a Freguesia de Sacra Família via Morro Azul.

No entorno da estação, nasceu, então, um amplo jardim nos espaços deixados livres pelos trilhos de manobra da ferrovia - o chamado rôdo - e logo à frente levantou-se a aconchegante Igreja de Nossa Senhora da Glória, padroeira da cidade, contemplada nos anos trinta com grandes obras de ampliação implementadas, em especial, por iniciativa de ilustres famílias do lugar, como os Barros, os Soares e os Dias.

Pelas ruas de Portela, gradativamente estabeleceu-se um amplo e diversificado comércio, representado por vários bares e armazéns, estrategicamente organizados no andar térreo dos vários sobrados construídos pelas pioneiras famílias daquela vila no auge da construção civil estimulada pela Estrada de Ferro.

Se por um lado Portela recebera imensos benefícios por parte da ferrovia, por outro sua posição geográfica trazia-lhe sérias dificuldades de comunicação com os demais centros populacionais da serra. De fato, durante o longo período de afirmação do lugar, compreendido pelas primeiras quatro décadas do século XX, os portelenses dependeram quase que única e exclusivamente dos trens para seus deslocamentos. Não havia estradas de terra regulares, ou pelo menos seguras, que descessem as vertentes da serra até Bonfim (Arcádia), e o caminho para Sacra Família do Tinguá, que poderia conectá-los com Vassouras, mantinha as mesmas características dos tempos de colonização: estreito, malconservado, intransitável em épocas de chuva e administrado por alguns fazendeiros da região.

Por conseguinte, muitas famílias portelenses que, por motivos diversos, não podiam tomar o trem e que se serviam apenas de cavalos e charretes, precisavam deslocar-se até Miguel Pereira para, daí, seguir para Vassouras através da longa e sinuosa estrada de Ferreiros. Claro que, a partir do ano de 1914, com a abertura do ramal ferroviário por Morro Azul e Sacra Família em direção a Vassouras, as viagens para esta cidade tornaram-se mais fáceis, mas a comunidade de Governador Portela ressentia-se de outras conexões viárias que a colocassem em contato direto com todas as localidades da serra, em especial aquelas nascidas na baixada do rio Santana, lá para as bandas de Paes Leme.

Tais dificuldades de comunicação mostraram-se mais visíveis para os agricultores e pecuaristas donos de pequenos sítios ao pé da serra, na área de Arcádia e Sertão (hoje Conrado). Era-lhes impossível transportar todos os seus animais e produtos apenas pelos trens, até porque o custo do frete por vezes não compensava a viagem, além do que nem todos os comboios ferroviários dispunham de vagões especialmente preparados para a acomodação de animais e cargas maiores.

Sendo assim, era comum, nos velhos tempos, ver-se uma caravana subir com sofrimento os meandros obscuros da serra que, de Bomfim (Arcádia), levava-as para Portela através da centenária picada das colinas que mais tarde serviria com o referencial topográfico e base de abertura da rodovia que atualmente une Portela a Arcádia. Tal picada fora rasgada em tempos ignotos por pioneiros desconhecidos e audazes, e graças a ela os logradouros aninhados no topo da Serra do Couto - principalmente Portela e Miguel Pereira - puderam se conectar às planícies irrigadas pelo rio Santana, de onde se alcançava Belém (agora Japeri) e depois o Rio de Janeiro.

Em tempos remotos, por ali desceram tropeiros coloniais, compradores de escravos, posseiros, simples aventureiros, fazendeiros e agricultores, cuja façanha seria decisiva, tempos depois, para um maior conhecimento da área onde nasceria Governador Portela. Prova disso é que, nos seios daqueles montes, surgiram as fazendas Rocha Negra (espaço hoje Parque Municipal Natural Rocha Negra, criado em 30.12.2010, onde será instalado o futuro atrativo Parque dos Dinossauros) e Ribeirão das Flores - esta em ruínas - e apareceria a enigmática "Capelinha dos Escravos".

Arcádia também se viu beneficiada pelas atividades dos pecuaristas ali estabelecidos em meados do século XX. Nas proximidades de sua estação ferroviária, ao lado de um centenário armazém erguido em finais do século anterior, os comerciantes Pullig e Risso construíram uma pequena casa comercial na qual procediam à desnatação do leite produzido por fazendolas próximas, fabricando queijos e manteiga que eram comercializados no armazém vizinho ou enviados para consumo em Portela e Miguel Pereira.

A multiplicação das atividades comerciais nas vilas serranas, aliada ao sensível aumento da produção agropastoril dos sítios da região serrana, despertou em alguns moradores e líderes comunitários a ideia de abrir caminhos alternativos pela serra, descartando assim uma dependência total dos trens.

A sugestão foi ganhando corpo e nos primeiros anos da década de trinta um grupo de homens visionários decidiu que era chegada a hora de construir uma estrada entre Portela e Arcádia a fim de que todos pudessem dispor de mais uma opção de viagem pelas montanhas, pela qual automóveis e caminhões pudessem transitar com mercadorias para o alto da serra. Afinal, para que um desses veículos chegasse a Miguel Pereira vindo do Rio de Janeiro, era preciso atravessar Paracambi, subir até Rodeio (Engenheiro Paulo de Frontin) e daí seguir até Santa Cruz de Mendes, de onde, acessando Vassouras, buscava-se a conexão com Ferreiros e, em seguida, com Miguel Pereira. Pode-se imaginar o tempo despendido numa jornada como essa por estradas de terra bruta e como os produtos transportados aumentavam de preço até chegar ao mercado consumidor. Portanto, nada mais racional e econômico do que descer a serra, chegar a Belém (Japeri) e daí partir para o Rio de Janeiro, hoje um percurso tão simples e rápido que nem parece ser verdade sua total inexistência há apenas 65 anos.

 

IMAGEM: Ruínas da ex-Fazenda Rocha Negra atual Parque Municipal Natural Rocha Negra, foto de 2018

 

Na próxima edição: A Rodovia para Arcádia = Parte 2