Estradas pioneiras e a Fazenda São João da Barra - Parte 1
Em memória de Rogério Cavalcanti van Rybroek
10/02/2023
Historiador Sebastião Deister
Edição 436
Compartilhe:
A ocupação territorial e demográfica do chamado
Centro Sul Fluminense (hoje caracterizado pela titulação Vale do Rio Paraíba do
Sul ou Vale do Café) tem seus primórdios cravados na abertura do Caminho Novo
de Minas comandada pelo bandeirante Garcia Rodrigues Paes entre os anos de 1700
e 1704, conectando as terras auríferas mineiras com a baixada do Rio de
Janeiro. Já em 1724, o Sargento Bernardo Soares Proença rasgaria outra via de
penetração a partir do Porto da Estrela, em terras hoje ligadas a Magé, para
subir a serra em direção à atual Petrópolis e reduzir ainda mais as viagens
entre Minas Gerais e a capital da então colônia brasileira.
O
desbravamento
Esse eixo de tropeirismo e sua transversalidade
territorial determinaram a matriz espacial de desbravamento graças à qual
dezenas de outros caminhos vicinais infiltraram-se por todos os quadrantes da
região acostada ao reverso da Serra do Tinguá e às margens do Paraíba do Sul,
possibilitando assim a chegada de fazendeiros, sertanistas, padres missionários,
historiadores, caçadores de peles e de índios, taberneiros, mascates,
comerciantes e até mesmo contrabandistas de ouro e pedras preciosas, cuja
presença não apenas gestou um contato intercultural interessante e de variados
matizes, como ainda estabeleceu uma rede de vizinhança que lenta, mas
firmemente, consolidou a colonização de toda a área irrigada pelo grande rio.
Estrada
Real de Santa Cruz, a Estrada do Comércio, a Estrada da Polícia
De fato, a circularidade
humana pelas várzeas e colinas exigiu uma ordenação geoespacial capaz de
hibridar socialmente os pequenos arraiais e povoamentos que brotavam pelas
férteis terras do Sul Fluminense, daí porque trilhas e caminhos foram sendo
abertos pelos vales dos rios Paraíba, Paraibuna, Preto e Santana, entre eles a
Estrada Real de Santa Cruz, a Estrada do Comércio, a Estrada da Polícia, o
Caminho de Rodeio (ou Caminho Novo do Tinguá), a Estrada Real das Boiadas, o
Caminho do Azevedo, a Estrada do Werneck e a Estrada Presidente Pedreira.
No recorte geográfico
contemplado pelo presente artigo, é sobremaneira interessante contemplar as
estradas do Comércio e da Polícia pelo seu direto tangenciamento geográfico e
histórico com a fazenda São João da Barra.
A
Estrada do Comércio - a mais antiga
Dentre as estradas que acabaram por
atender diretamente Valença e Vassouras, a mais antiga era a chamada Estrada do
Comércio, planejada e iniciada no interregno 1811/1813 em razão de uma proposta
da Junta Real do Comércio, Agricultura, Fábrica e Navegação do Estado do Brasil
e Domínios Ultramarinos, daí sua titulação. Vale lembrar que essa instituição foi criada em 23 de agosto de 1808 como parte das
intervenções introduzidas no Rio de Janeiro após a transferência da Corte
Portuguesa para o nosso país com vistas a adequar a recente estrutura
administrativa colonial às novas necessidades brasileiras. Naquela então
inédita conjuntura política e social, a implantação da Junta Real do Comércio
aglutinou-se a outras medidas econômicas tomadas por D. João VI no Brasil, em especial a abertura
dos portos aos países amigos, decisão que eliminou a exclusividade comercial da
metrópole portuguesa e, paralelamente, revogou o Alvará de 1785, que proibia o
estabelecimento de manufaturas e fábricas na colônia brasileira. Naturalmente,
o modo de atuação da Junta Real do Comércio acompanhava o modelo daquela criada
em Portugal pelo Decreto de 30 de setembro de 1755, cuja instituição ocorria no
âmbito dos primeiros anos das reformas introduzidas pelo Marquês de Pombal, que
procuravam reafirmar a autoridade do poder do Estado através da reorganização e
do reforço de sua estrutura administrativa, buscando assim favorecer a
circulação comercial e a arrecadação fiscal. A Junta substituiu a Mesa do
Espírito Santo dos Homens de Negócios que Procuram o Bem Comum do Comércio,
poderoso instrumento de fiscalização e direção das práticas mercantilistas do
período de colonização.
Na verdade, o caminho teria de atravessar uma região
de mata virgem para abreviar o trajeto das tropas de mulas entre o porto
do Rio de Janeiro e as Minas Gerais e Goiás, sendo executado pelo
Coronel de Milícias José Pedro Francisco Leme por incumbência de Paulo
Fernandes Viana, Intendente Geral de Polícia, o mesmo que posteriormente teria
papel destacado em outra estrada batizada como Estrada da Polícia.
A Estrada
do Comércio
A Estrada do Comércio
ficou pronta apenas em 1822. Começava na vila de Nossa
Senhora da Piedade do Iguassú, subia a serra do Tinguá e chegava até o porto de Ubá, atual distrito de Andrade Pinto, em Vassouras, às margens do rio Paraíba do Sul, de onde podia seguir para Minas
Gerais e Goiás. Em Piedade, a estrada permitia a conexão com diversos portos no Iguassú, de onde as
embarcações chegavam aos ancoradouros do Rio de Janeiro. Outra opção era seguir
por veredas que passavam pela Freguesia de Nossa Senhora da Apresentação
do Irajá e Inhaúma até alcançar o
centro da capital.
Estrada da
Polícia
Algum tempo depois, surgia a Estrada da Polícia (assim
denominada em homenagem ao Intendente da Polícia Paulo Fernandes Viana, citado
mais acima), com seus desvios para Vassouras e Valença e até mesmo com caminhos
alternativos para diversas outras regiões fluminenses, fator de pronta conexão
social, comercial e econômica com a região cafeeira do Vale do Paraíba.
De maneira lenta, porém irreversível, a Estrada do
Comércio acabou perdendo importância, até porque, em 1858, com as viagens da Estrada de Ferro Dom Pedro II (posteriormente
Estrada
de Ferro Central do Brasil), todas as mercadorias antes transportadas por
mulas e tropeiros passaram a ser remetidas de maneira rápida e segura pelos
trens que a princípio ligavam a Corte do Rio
de Janeiro a Queimados e Belém (hoje
Japeri).
É ainda importante registrar que a abertura da Estrada do Comércio influenciou
bastante o crescimento econômico da Baixada
Fluminense e
a criação da vila de Nossa Senhora da Piedade do
Iguassú, que
depois mudou de lugar e nome para o atual município de Nova Iguaçu.
A primeira seção
da estrada foi
praticamente reconstruída em 1842 pelo coronel Conrado Jacob de Niemeyer, agregado ao Imperial Corpo
de Engenheiros do Império, que retificou calçamentos já danificados e
acrescentou outros trechos de pedra, corrigiu alguns metros mais sinuosos dos
pisos e construiu novos pontilhões e outros muros de arrimo para contenção de
encostas. O coronel Niemeyer, inclusive, mudou-se com a família para a
serra do Tinguá, ocupando áreas onde atualmente localiza-se o distrito de Conrado, em Miguel Pereira. Acredita-se ter sido ele o responsável pela transferência da imagem e
do sino de Santana das Palmeiras (vila erguida no coração da mata do Tinguá,
hoje totalmente desaparecida) para a Catedral de Santo Antônio de Jacutinga, em
Iguassú, que, posteriormente, repassou as peças para Conrado em 1901.
Atualmente, a histórica Estrada do Comércio pode ser
percorrida em sua quase totalidade, uma vez que apenas no interior da REBIO
(Reserva Biológica do Tinguá) ela está vedada a qualquer tipo de trânsito ou
mesmo a simples passagens de pedestres. Entrementes, em relação ao presente
estudo, ela passa exatamente em um trecho contíguo à porteira principal da
fazenda São João da Barra, dali seguindo para Morro Azul do Tinguá e,
posteriormente, para Vassouras e Valença.
Imagem: Frontaria da Fazenda São João da Barra
Na próxima edição:
Estradas Pioneiras e a Fazenda São João da Barra - Parte 2