13 de maio à espera da autêntica abolição da escravatura no Brasil

Manter uma fazenda tipicamente escravista exigia a compra de novos negros para repor seu contingente braçal

 12/05/2023     Historiador Sebastião Deister      Edição 449
Compartilhe:       

Além da devastação das matas nativas e do lento, porém irreversível esgotamento do solo, os fazendeiros do Vale do Café passaram a enfrentar sérios problemas com a mão de obra escrava mesmo antes do advento da Abolição. Manter uma fazenda tipicamente escravista exigia - segundo Eduardo Silva observou com acuidade - a compra de novos negros para repor seu contingente braçal ou substituir aqueles que fugiam, envelheciam, adoeciam gravemente, tornavam-se inválidos ou então morriam.

Depois de 1850, o sistema escravocrata tornou-se ainda mais dispendioso e dezenas de negros eram considerados sem valor quando se viam abatidos por alguma enfermidade. Por vezes, sua cotação atingia níveis mínimos e quase simbólicos, trazendo para seus arrogantes senhores prejuízos difíceis de serem ressarcidos. De fato, mantidos com alimentação deficiente - ou às vezes em jejum forçado, como castigo por alguma desobediência - e vivendo em condições desumanas de higiene, os negros tornavam-se vítimas fáceis de doenças graves e epidemias devastadoras, agravadas sempre pelo trabalho ininterrupto e árduo das lavouras. Assim ocorreu com a epidemia de cólera que se alastrou desde a Fazenda da Cachoeira, em Vassouras, em meados do ano de 1865. Ainda em março do ano seguinte, a moléstia fazia suas vítimas, a ponto de a Fazenda Pau Grande perder 9 escravos e cuidar de mais de 85 doentes!

Já alguns decênios antes, a sombra do terror estacionara sobre o Rio de Janeiro: surtos violentos de febre amarela tinham ocorrido em 1850, 1852, 1853 e 1854, vitimando inclusive muitos estrangeiros em visita ao país. Por sua vez, 1856 tornou-se o ano da cólera e da malária, doenças que, em conjunto, ceifaram principalmente a vida de milhares de negros, justamente os menos preparados tanto física quanto higienicamente para suportá-las, repetindo-se tal desgraça em 1865, o que levou inclusive a população da Vila de Santana das Palmeiras do Alto da Serra do Comércio, onde o barão de Paty erguia uma majestosa Igreja, a abandoná-la em pânico em meio à mata do Tinguá (hoje Reserva Biológica do Tinguá).

Além da cólera, da febra amarela, da malária e de alguns preocupantes casos de tuberculose, sífilis, bouba, pneumonia e outras infecções violentas, havia também, sobre a cabeça dos fazendeiros e barões, o medo constante de revoltas entre os negros, o temor por possíveis fugas de escravizados mais corajosos, saudáveis e intimoratos, e um visível pavor pela possibilidade, cada vez mais próxima, de os governantes eliminarem o sistema escravocrata em função das pressões políticas nacionais e internacionais.

Como se não bastassem tantos problemas, os senhores da terra precisavam ter enorme cuidado ao negociar com os comerciantes maliciosos da cidade grande, que se valiam de procedimentos escusos e de artimanhas inimagináveis para tentar impingir aos compradores desatentos e ingênuos alguns negros doentes e já imprestáveis.

Por consequência, a outrora farta produção das fazendas tidas como inatingíveis por qualquer tipo de crise começou a mostrar uma queda drástica em seu volume de trabalho e na qualidade de suas safras mais fundamentais. Sem uma equipe de escravos numericamente adequada ao cultivo da terra, as plantações aos poucos iam sendo abandonadas, e sem os lucros delas advindos, os antes orgulhosos senhores brancos nem mesmo podiam dispor da engorda dos animais, cuja criação e alimentação dependiam dos braços negros e do dinheiro obtido com a venda de café, atividade cada vez mais reduzida em razão de todos os fatos mencionados. Gravitando em torno de tantas mazelas, a crise do café foi tão-somente um pequeno preâmbulo para a derrocada final. Criara-se, no Vale do Paraíba, um ciclo vicioso de decadência e marasmo nos imensos latifúndios agropastoris da época, os quais se viram inapelavelmente fulminadas com a Abolição da Escravatura em 13 de maio de 1888.

As fazendas do ativo barão de Paty não foram, naturalmente, as únicas do Tinguá a sofrerem com a aguda conjuntura da cafeicultura. Também em Vassouras, no ano de 1856, ela já se manifestara nos mesmos moldes verificados em Paty do Alferes e até mesmo em grande parte da nossa área serrana: devastação do solo, ausência de novas glebas apropriadas ao plantio, número insuficiente de escravos, poucos empregados qualificados e lavouras muito antigas - algumas com mais de vinte e cinco anos de produção -, que nada mais ofereciam além de uma reduzida e desestimulante quantidade de grãos sem qualidade. Tanto preocupava essa situação assustadora que, em 1862, um dos vereadores da Câmara Municipal de Vassouras denunciava à Sociedade Auxiliadora da Indústria Nacional que os cafezais plantados em substituição às floresta virgens já não mais cobriam os morros transformados em terras desnudas, quanto trinta anos antes bosques frondosos recobriam quase toda a região.

Teria a Abolição, de fato, tirado os negros da masmorra, das doenças, das desigualdades em relação aos brancos, da favelização, do desrespeito, da penúria e de sua condição subalterna de escravização? Desagradáveis e cínicos exemplos racistas, governamentais, sociais, religiosos e econômicos estão aí no país a mostrar que não. Portanto, por que exaltar tal data? Por essa razão, tomarei a liberdade de reproduzir alguns excertos de um belíssimo texto escrito por Alaor Eduardo Scisinio ao concluir sua obra Escravidão & A Saga de Manoel Congo (1988).

 

 

"A sublevação dos negros começou com a utilização do seu braço no trabalho servil e não parou até hoje. Dos quilombolas aos boias-frias existem séculos de luta, de sangue, de insurreições, sem nenhum dia sem aplicar a covardia contra eles (...) Os anos que sucederam à Lei Áurea criaram um negro nem escravo nem livre, e em mais de cem anos de busca, os negros não encontraram sequer a si mesmos (...) O negro muda de vida, mas não muda de dor. Anos atrás, no Brasil, o sistema, conhecendo a função revolucionária da ociosidade, deu para ele o nome de vadiagem e criou normas capitulando-a como contravenção penal apenas justificadora da violência endereçada ao negro (...) É necessária uma mudança radical em sua posição social. É momento de puxar o negro da "área marginal da economia urbana e rural" para integrá-lo no sistema produtor, exercitando neste o papel de trabalhador livre (...) Passados mais de cem anos, o negro está visualizando nos preconceitos sociais reinantes, nas discriminações raciais, na concentração de poderes em mãos de velhos escravistas e conhecidos conservadores  a ideia de que o 13 de maio foi somente uma forma de frustrar a ação dos líderes negros de outrora, afastando-os de suas guerras justas (...) Desse estudo emerge a certeza deque o longo período escravista marcou definitivamente nossa terra e nossa gente, devendo debitar-se a ele a nossa exagerada paciência e a facilidade com que aceitamos os ópios, os freios e os engodos. Grande parcela de nosso povo é de origem negra. Este é um país negro. Exaltem-se os heróis negros Zumbi, Manoel Congo, Carucango e outros. Alarguem-se as estreitas portas das universidades, para que aqui e ali uma voz negra encontre eco nas Casas-Grandes, que já não são tão casas e nem tão grandes. Nas artes e nas letras existem presenças com participação nas transformações, e não presenças meramente históricas. São sempre notadas as marcas do escravismo, dando a falsa ideia de um povo acostumado ao relho, à sevícia e à violência. Sempre as revoltas, visando a colocar a questão do negro nas mesas de discussões dos problemas nacionais, entendendo-se que a abolição definitiva só se dará com a total integração social do negro. A verdadeira Abolição só será revelada com a presença negra nas decisões nacionais, opinando, governando, legislando e coparticipando da construção deste Brasil que busca seu lugar nessa corrida de nações. Este, talvez, o maior sentido das comemorações da Lei Áurea. E este, talvez, o maior alcance dos 135 anos da Abolição da Escravatura".